Memórias do que a vista não alcança

Socorro Nunes*

Se eu fosse de algum comitê com o poder de deliberar a transformação de uma comunidade em município, só aprovaria aquela que tivesse pelo menos uma biblioteca pública, uma escola com biblioteca e acervo de livros de todos os tipos e épocas, um hospital bem servido e saneamento básico.  Quando eu era criança, minha cidade não tinha biblioteca, nem me recordo de quando foi criada. Mas a escola tinha.  Era meu refúgio durante o recreio. A gente podia pegar livros emprestados e devolver quando concluída a leitura. Era uma sala relativamente ampla, mesas e cadeiras, livros para adultos, poucos para crianças, não havia revistas, nem gibis, nem livros de faroeste, mas o acervo instigava a curiosidade. 

Não me recordo de ter de pegar um livro a pedido da professora para depois preencher uma ficha de leitura como se vê nas escolas de hoje em dia. A minha sensação era de ter o livro, com suas palavras, figuras e ilustrações, como um brinquedo que me abria um mundo desconhecido, observava tudo, o tamanho, a capa, queria saber do escritor (que eu sempre julgava morto). Diferente do que eu observava na vida real, os livros me apresentavam uma paisagem muito diferente da que eu estava acostumada. Com os olhos de criança, via que o mundo era muito maior e minha cidade do tamanho do olho da formiga. 

Muitas vezes eu ia à biblioteca apenas para treinar a recitação de algum poema que seria dito numa data comemorativa, como o sete de setembro e o aniversário da cidade. Sempre escalada para declamar nestas datas, fui tomando gosto pelo texto poético, até que um dia esqueci um trecho no meio da declamação. Chorei muito e jurei que nunca mais recitaria em público. Quando cresci vi que a poesia não me abandonou. Ao invés de recitar de cor, leio e me arrisco na escrita. Por vezes ia à biblioteca em busca de um novo livro, havia concluído a leitura de outro e não gostava de passar muitos dias sem esse contato. Sem perceber estava me aculturando no mundo letrado, tarefa difícil de se desempenhar hoje em dia com a disputa pela atenção dos pequenos entre a escola, a internet, os vídeogames e a televisão.  

De repente me vi envolvida numa rede de leitores de livros de faroeste. Chegavam pelo correio, amigos compravam e me emprestavam. Em troca, eu cedia meus gibis, também adquiridos pelo correio. Aos doze anos já tinha meu dinheiro e podia comprá-los. Leitora que sou, hoje me questiono por que aquelas páginas me fascinavam tanto. Acho que era mesmo pela semelhança com a paisagem da cidade poeirenta, com a ventania forte destelhando casas, derrubando árvores, fazendo redemoinhos ruidosos e apavorantes entre os meses de maio e agosto. Nesses dias, batíamos as portas e janelas, travadas com tramelas de ferro, minha mãe, religiosa que era, rogava aos santos, acendia velas, o vento apagava, sua fé inabalável acalmava a todos. Mas não conseguíamos aplacar a poeira. Passada a tormenta, limpar a casa com vassoura de palha, preparar camas e redes pro descanso, chá de folha de laranja pra dormir. 

Perdi a conta de quantos faroestes eu li, afora os gibis, as fotonovelas e os livros da biblioteca. A rede de leitores só crescia, eu lia cada vez mais. Diminuí as brincadeiras na rua. A fase era de transição. Interesses mudando. E eu ali, imersa nos livros e ignorando a TV em preto e branco recém-chegada à cidade.

A minha formação de leitora evidencia que a educação literária que tive foi atravessada não apenas pela escola, mas principalmente pela rede de leitores da minha geração que se formou entre os anos de 1970 e 1980. Líamos textos que alguns classificam como não literários, como por exemplo os gibis, as revistas de fotonovelas, os livros de bolso com histórias de faroeste. Entretanto, prefiro ficar com a definição de Antonio Cândido de literatura como todas as criações de toque poético ficcional ou dramático… folclore, lenda, chiste, até as formas mais complexas e difíceis da produção escrita das grandes civilizações (CANDIDO, 1989, p. 112).  E com a perspectiva de mediação defendida por Pettit (2008), quando afirma que O gosto pela leitura não pode surgir da simples proximidade material com os livros. Um conhecimento, um patrimônio cultural, uma biblioteca, podem se tornar letra morta se ninguém lhes der vida.  (PETIT, 2008, p. 154).

Nesse longo caminho encontrei (e ainda encontro) diferentes mediadores que me possibilitaram o acesso às mais diversas formas da linguagem literária todas elas cumprindo um papel decisivo na formação do meu gosto, na minha autonomia para selecionar e escolher os livros, os escritores, na formação da minha “biblioteca interior”, um repertório diversificado que vem se constituindo ao longo de décadas. A escola, especialmente a dos anos iniciais, teve um papel importante na construção de uma relação com a leitura literária menos determinada por tarefas didáticas de preenchimento de fichas de leitura. A poesia era para ser lida, memorizada e falada nos jograis, o que me fez perceber desde cedo a importância da vocalização do poema para a construção dos sentidos, para a apreciação estética. Como poeta, essa vocalização está presente desde o princípio na composição de meus poemas. Escrevo e leio repetidas vezes até que perceba o momento em que dou o poema como pronto para ser lido pelo leitor. 

Para 2021 desejo que a literatura esteja mais presente na vida das nossas crianças e jovens, que os professores sejam mediadores, estabeleçam pontes entre os alunos e os livros, sejam uma referência na constituição da autonomia e na formação do gosto literário. E que nenhum município novo possa ser criado sem uma biblioteca. 

*Maria do Socorro Alencar Nunes Macedo. Universidade Federal de São João-del-Rei. Professora Titular do Departamento de Ciências da Educação GPEALE, grupo de Pesquisa em Alfabetização,  Linguagem e Colonialidade. Programa de Pós-Graduação em Educação da UFSJ e da UFPE.

 

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