Maria das Dores Campos: professora, memorialista e narradora de muitas histórias…- Cairo Mohamad Ibrahim Katrib

Maria das Dores Campos: professora, memorialista e narradora de muitas histórias…

Cairo Mohamad Ibrahim Katrib

Maria das Dores Campos ou dona Mariazinha, nasceu em 22 de março de 1911 em Catalão, na região sudeste do estado de Goiás. Filha de família tradicional foi uma das primeiras normalistas a se formar no curso ofertado pelo Colégio Nossa Senhora Mãe de Deus, em 1928. No ano seguinte começou a lecionar em escolas locais exercendo a profissão por mais de 70 anos.

A sua dedicação ao magistério é de se destacar, inclusive ocupou vários cargos municipais e estaduais no campo educacional. Foi coordenadora, supervisora, diretora, inspetora de ensino na cidade, dentre outros. Durante sua trajetória docente dedicou-se também a recontar a história do município, escrevendo diversos livros dentre os quais destaco: Catalão: Estudo Histórico e Geográfico lançado em 1976 e Gente Nossa, de 1985.

O que nos chama a atenção na trajetória da memorialista não é simplesmente o exercício do magistério, mas suas obras que nos servem como suporte dialógico para várias pesquisas, pois apresentam uma riqueza de detalhes que nos permite enveredar e compreender a dinâmica da história local em suas múltiplas possibilidades. Foi por esse motivo que me apeguei ao material produzido pela memorialista quando do meu processo de investigação para a composição da minha dissertação de mestrado e tese de doutoramento. Foi a partir das histórias por ela descritas que percebi uma narrativa em mão única que me levou a descortinar a cidade, seu cotidiano e a compreender como a política local se sustentava na manutenção de muitas festividades da Cultura Popular local. A preocupação de seus livros é “narrar” a cidade, tendo como grande espelho que reflete o passado no presente, pelo seu olhar. No livro Catalão: Estudos históricos e geográficos, ela vai recompondo o mosaico de narrativas sobre a cidade, dando vida a personagens e situações com uma riqueza de detalhes que desperta o olhar curioso de qualquer pesquisador. Num dos episódios por ela protagonizados, remonta a sua infância para descrever a participação da família nas festividades populares da cultura local. Nesse momento ela narra com riqueza de detalhes a participação de seus familiares nos festejos em louvor a Nossa Senhora do Rosário como se fosse, nessa tenra idade, um flâneur a percorrer os bastidores dessa comemoração observando com astúcia a riqueza de detalhes dessa história, definindo o enredo a ser contado.

A narrativa que compõe os episódios desse livro serve também para que a memorialista evidencie o papel e os feitos de seus familiares, projetando-os no cenário cultural da cidade e dando visibilidade à família ao endossar a sua participação nos mais variados momentos históricos oficializados por ela nessas obras. Numa das passagens em que ela descreve a festa em louvor a Nossa Senhora do Rosário de Catalão, é ela a protagonista, a narradora que minuciosamente ata os nós do passado à história da cidade, recompondo cenários, vitrines sociais e políticas e evidenciando o papel social, econômico, cultural e político das famílias abastadas da região exemplificada pelo seu próprio clã. Essas narrativas servem também para diferenciar o papel social ocupado pelas famílias tradicionais locais e o restante da população local. É espaço para reforçar valores e manter o status social em evidência.

Numa das passagens em que Mariazinha descreve a festa vivenciada por ela em 1916, destaca que seus parentes sempre foram as pessoas responsáveis junto à igreja católica de realizar as comemorações em devoção a Santa do Rosário e, ela, com cinco anos foi festeira. Ela narra que: “lembro-me que nos vestiram de rei e rainha, fomos carregados pelo pretos, levando a coroa de Nossa Senhora, numa bonita bandeja de prata”. Numa outra passagem ela enaltece a pretensa bondade dos fazendeiros locais para com os negros que eram e são quem mantêm viva a tradição do Congado como parte da devoção ao Santíssimo Rosário.

Outra passagem desse mesmo episódio, narra que nos dias de festa “os sinhôs e as sinhás tinham considerações especiais para com os pretos empregados, nas fazendas que ainda conservavam o hábito e costume da escravidão recentemente extinta. Muitos usavam roupas, joias e adereço de seus patrões”.

Essa descrição evidencia a subjugação dos negros aos brancos da época, mesmo com o fim da escravização. A narrativa é construída para evidenciar a separação cultural e econômica de brancos e negros, além de destacar uma pretensa bondade dos fazendeiros para com os trabalhadores negros. Mas mais do que isso, o incentivo da participação dos negros no festejo em louvor a Nossa Senhora do Rosário era uma grande vitrine política que projetava os fazendeiros no cenário local. Ao ornarem com joias e adereços os negros para cultuarem a santa branca, nada mais almejavam do que transmitir à população status e poder econômico.

Na visão de Maria das Dores Campos, nos dias de festa a devoção e a fé à Santa do Rosário reunia indistintamente negros, brancos, fazendeiros e população em geral num mesmo espaço e para uma mesma certeza: festejar a Santa de devoção. Porém, nota-se em suas descrições a imposição do catolicismo aos negros e também os interesses dos políticos em se fazerem vistos ganhando a confiança da população, sendo reconhecido por outros políticos.

O momento do festejo era crucial para a concretização desses jogos de interesses e o que mais se enaltecia era o da bondade dos fazendeiros para com seus trabalhadores negros pois, como bem descreve a memorialista, “enquanto os foguetes pipocavam o céu, colorindo-o com fagulhas reluzentes, o negro lavava com suor seus pedidos e súplicas por melhores dias, e em cada batuque expressava na força da batida das caixas e no seu semblante pensativo, a expressão dos sofrimentos de sua labuta diária. A persistência e a vontade de conquistar de fato a liberdade impulsionava a vida e fé dos negros dançadores. Nos pulos, requebros e danças, recordando a África distante, na agitação desordenada de seus corpos suados, ao som pungente de suas vozes, dizendo palavras esparsas que lembravam um culto africano já distante e deturpadas, víamos uma raça oprimida e sofrida. Seu canto tinha muito de angústia. Era um choro que gritava contra as algemas da escravidão e do preconceito racial”.

A visão festiva descrita pela memorialista induz à percepção que vários momentos festivo-devocionais existentes nas celebrações em louvor a Nossa Senhora do Rosário existentes hoje são tradições advindas de séculos passados. O café da manhã, os almoços oferecidos aos grupos de dançadores que acontecem hoje e que são de responsabilidade dos festeiros aconteciam anteriormente, pois o festeiro era responsável direto pela festa e pela alimentação dos dançadores, contando com os donativos de fazendeiros e da população em geral. Era responsável também pela organização da parte devocional como a reza do terço, missas, novena, supervisionados pelo padre responsável pela cidade, ou seja, festejar a Santa protetora era garantia de muitos votos e de projeção no cenário social e político local. Essa faceta ainda hoje compõe o mosaico festivo da devoção ao Rosário em Catalão.

Portanto, se Maria das Dores Campos em seus relatos refez caminhos, recontou histórias, reavivou memórias de um passado, ela também definiu o tom dos registros oficiais, o protagonismo de vários sujeitos, evidenciando que a história é composta por fragmentos capazes de recompor vidas, sentidos, acontecimentos; basta o pesquisador saber jogar o jogo no grande tabuleiro de intencionalidades que compõem o oficio de pesquisador.

Doutor em História Cultural pela Universidade de Brasília (UnB). Professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Uberlândia.

 

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