Enquanto os humanos lutam para diferenciarem-se entre si, entre classes sociais e “raça”, os processos migratórios mostram a nossa interdependência e fragilidade em relação ao meio ambiente como um todo (uma vez que fazemos parte dele).
Sabemos que os diversos povos, embora já migrassem pelo globo terrestre, faziam numa velocidade muito menor do que a que vemos hoje. E migram por motivos diversos, desde pela motivação de lazer (predatório e consumista, diga-se de passagem), até por questões de guerra e insuficiência de condições de vida digna em seus respectivos países ou regiões de origem.
‘Predatoriamente’, tentam diferenciar-se em relação à natureza e, também, entre si.
Nessa ânsia, escutamos frases como “seu cabelo é de ‘nêgo’ ”, “seu nariz é largo”, “você não tem estilo”, “que roupas são essas?”, “você não tem vocação para esta profissão”, “sua cabeça é ‘chata’ ”, “sua aparência não é agradável”, “comporte-se como menina”, “comporte-se como homem”, “Deus não se agrada com isso”, dentre outras exalações de uma caldo composto por racismo, fascismo, homofobia, misoginia e fundamentalismo religioso, no qual todos tivemos que beber (e ainda bebemos), seja em nossa família, seja nas relações que estabelecemos.
Essa tentativa de diferenciação, no contexto brasileiro (com certeza, não só aqui), cria repulsa por tudo que possa lembrar as ditas “culturas não legítimas”. De modo geral, as culturas não cristãs são alocadas como nefastas, tribais, atrasadas.
A vontade de diferenciar-se manifesta-se, não somente nas empreitadas para superar outras culturas, mas, também, para sair de posições sociais consideradas subalternas e alçar lugares que, socialmente, permitem explorar outros indivíduos e o meio ambiente.
O Apartheid ainda não acabou quando causa estranhamento uma pessoa que não seja branca estar na direção de um veículo mais luxuoso; ou, ainda, quando não há estranhamento ao chegarmos numa instituição e notarmos que não são as brancas e os brancos que exercem funções mal remuneradas (varrer, servir, usar da força corporal para atender os mais abastados).
O afastamento dos humanos em relação ao seu corpo, às funções “braçais” decorrem (além da sua necessidade de diferenciar-se em classes sociais) do distanciamento em relação ao mundo como ele é. No mundo real, saberes afastados da natureza, da “Mãe Terra”, que buscam automatizá-la, dominá-la e objetificá-la, igualmente nos afastam dela e, logo, não haverá mais condições de permanecermos ‘nela’.
Não por acaso os países ditos mais ricos buscam dominar a Lua e privatizá-la (talvez por perceber que, logo, as condições para a raça humana sobreviver aqui serão inviáveis).
Enquanto a humanidade tratar a natureza como um recurso, não entendendo-se como parte dela, mais o fim do homo sapiens estará próximo. Diferentemente das narrativas postas, a natureza não acabará, pois seguirá seu curso, com ou sem os humanos.
Se nós (humanos) consumimos muito mais recursos do que a natureza pode regenerar e se uma pequena parcela da população consome o equivalente a uma grande maioria, isso significa que buscar condições iguais de consumo é o mesmo que gerar o esgotamento das condições materiais de sobrevivência.
Em suma, buscar igualdade, nos parâmetros que estão postos pelo sistema atual de organização social (urbano), significa, buscar a morte de tod@s.
Se pensarmos bem, os imigrantes europeus que vieram ao Brasil, em troco de terras e abastecidos de políticas públicas de acolhimento e de uma reforma agrária mortífera aos que vivem de maneira harmônica com a natureza (pois são e entendem-se como parte dela – os povos indígenas) sempre tentaram, a qualquer custo, diferenciar-se da natureza e afastar-se do trabalho manual o quanto puderam (já que outras ‘raças’ consideradas inferiores poderiam fazer este serviço).
O empreendedorismo, tão valorizado pela classe que se julga dirigente da sociedade, obedece à lógica da meritocracia e da busca incessante do lucro pela exploração do ambiente e de outros humanos.
Algumas vezes, com o invólucro de empresas sustentáveis (em meio a narrativas do ecocapitalismo), ancoram-se no antropocentrismo (ser humano no centro de tudo) para continuar distinguindo-se do “resto”, sem entender que esse “resto” é um organismo vivo e o homo sapiens age como pequenas bactérias, que podem ser expulsas a qualquer momento – é só observar a facilidade com que as mortes ocorrem em meio ao coronavírus.
Em tempos de intensas reflexões, como as que estamos vivendo, é preciso revisitar nossa visão de mundo, é necessário contestar o antropocentrismo e focar nos direitos da natureza (pois, se somos parte dela, são nossos direitos, também).
Em homenagem à ciência, homenageio a ciência de todos os povos e as culturas que foram negligenciadas, em especial, aquelas em que o ser humano não se enxergue como o centro de tudo, pois não é, não está.
A Marcha pela Ciência deve ser a marcha pela vida, em todas as suas formas. No entanto, para isso, temos que centrar as pesquisas e as cosmovisões na vida onde ela está, ‘no todo, não nas partes’, ‘no integral, não no fragmentado’.
Imagem de destaque: Nikola Jovanovic / Unsplash