André Luiz Paulilo
Muitos têm visto a escola graduada como a origem dos problemas de retenção. Não só o Brasil, mas a França, a Suíça e os EUA reúnem estudos que sugerem haver uma relação de causa-efeito entre a seriação da aprendizagem e o fracasso escolar. O arranjo que a escola seriada permitiu dar à classificação dos alunos e às atribuições dos professores também produziu repetência e evasão ao submeter a aprendizagem a um controle mais estreito do tempo e objetivá-la em padrões médios de resultado. De fato, a solução administrativo-pedagógica que se encontrou para expandir o acesso da população à escola mostrou ser, igualmente, um eficaz dispositivo de seleção social e importante impeditivo da permanência.
No caso específico do Brasil, foi o grupo escolar que deu forma à escola graduada ainda no século XIX. Com a reunião de escolas isoladas em um mesmo edifício conseguiu-se então organizar classes mais homogêneas do ponto de vista da faixa etária e do nível de progressão e implantar a seriação, a divisão do trabalho docente, enfim, uma nova cultura escolar.
Enciclopédica, elitista e pedante, conforme avaliação dos seus primeiros críticos já nos anos 20 do século passado, essa modalidade escolar não popularizou a educação, retendo e expulsando contingentes significativos de crianças da escola e funcionando como símbolo de coesão e status. As mudanças de método, concepção e programas de educação com que se quis, no movimento da escola nova, dar outro contorno às práticas e saberes escolares não negaram os avanços da escola graduada na organização do ensino. Também não reverteram o quadro de fracasso que a repetência e a evasão consolidaram nas estatísticas de rendimento escolar do país ao longo do tempo.
Mais recentemente, a organização da aprendizagem em ciclos parece opor à seriação outro projeto de educação. Desde a implantação do Ciclo Básico de Alfabetização na rede estadual paulista em 1984, o esforço de proporcionar mais tempo de aprendizagem por meio de reestruturação curricular, emprego de metodologias específicas de ensino e práticas de não-retenção vem se consolidando como forma de diminuir a seletividade e exclusão e uma alternativa de democratização da escola. A variedade das experiências nesse sentido nas últimas três décadas, as dificuldades dos professores acerca da promoção de todos os alunos dentro do ciclo e as altas taxas de reprovação no fim dos ciclos dão alguma medida às dificuldades de romper com a seriação. De fato, práticas de classificação e de sequenciamento da progressão escolar resistiram a projetos como “Ciclos de Aprendizagem”, em São Paulo, “Escola Plural”, em Belo Horizonte e “Escola Cidadã” em Porto Alegre.
Lembrar que, quando foi criada, a escola graduada fez lidar com um novo modo de organizar o ensino e a prática pedagógica, diferente daquele praticado nas escolas isoladas, é algo que pode trazer lições interessantes. A começar pelo arranjo administrativo-pedagógico que viabilizou a seriação. O grupo escolar confere visibilidade pública a uma concepção de educação capaz de se consolidar num tipo de arquitetura, num modelo pedagógico e numa organização de classes específica. A monumentalidade dos edifícios construídos para servirem de grupos escolares expressou uma conjugação pouco comum nas políticas de educação no Brasil entre ideias e princípios e os modos para sua efetivação e que permaneceu aos objetivos para os quais foi criado.
Entre fins do século XIX e meados do século XX a educação passou por mudanças de finalidade, o ensino, por modernização dos métodos, a escola, por reformas na sua organização, mas a aprendizagem permaneceu seriada. Após a extinção dos grupos escolares, a escola permaneceu seriada. Ainda que com um modelo político-pedagógico e uma organização de classes específica, as políticas de ciclos de aprendizagem ainda não alçaram à visibilidade pública seu projeto de educação. Daí ser grande a dificuldade das últimas três décadas desse outro arranjo da aprendizagem disputar com o regime seriado o lugar de “escola de verdade” na maneira de pais, professores e também as crianças ver o ensino básico. Talvez fosse válido perguntar se a aprendizagem por ciclos, de fato, pode acomodar-se a uma organização do espaço, físico e político, concebido para o funcionamento da escola seriada.
Outra lição pode ser aprendida perguntando-se sobre a maneira como os docentes experimentam mudanças desse tipo. Tem sido comum encontrar o professorado rejeitando e resistindo a qualquer avanço para superar o sistema seriado. Lastimavelmente, sabemos pouco sobre como os professores reagiram à implantação da escola seriada, se aprenderam logo a trabalhar com a seriação ou precisaram de tempo para isso, os modos como se aproveitaram do surgimento da avaliação de final de ano e também o que lhes foi inoportuno ao lidar com essa maneira de organizar a prática pedagógica. Por outro lado, estudaram-se o suficiente os modos de preparar para a docência na escola seriada para compreender os seus princípios. A apreciação das formas de ensino, da aplicação do método, numa formação que se dava, sobretudo, pela imitação de modelos, assegurava a observação de práticas exemplares durante a formação docente. Voltada para a realização dos projetos de homogeneização cultural e política pretendida pelas elites mandatárias, a formação exigia das professorandas esforço para participar ativamente do processo de implantação da escola graduada.
A ausência de algo parecido atualmente na formação docente não é de se lamentar, já a leniência da legislação com um preparo de nível médio ou eminentemente prático para o magistério sim. Como no processo de afirmação da escola graduada enquanto modelo de organização do ensino, a mudança do arranjo depende de uma reestruturação da cultura profissional do magistério – o que dificilmente se dá sem a circulação, a apropriação e a construção de novas concepções de atuação e de outros processos de aprendizagem. Nessas circunstâncias, o preparo docente não se acomoda aos protocolos da prática do magistério nem à formação inicial, articula-os a outros modos de conceber a educação e o fazer da profissão.
Entre outras tantas possibilidades de aproximar as manobras para implantar a escola graduada no Brasil das atuais estratégias para organizar a aprendizagem em ciclos, como a modificação na carreira do magistério, a aquisição de material didático, a produção dos manuais de ensino, há especialmente uma que cumpre destacar aqui antes de terminar. O projeto político que engendrou a fórmula por meio da qual a seriação se viabilizou como modelo escolar predominante no país ao longo do século passado foi elitista e autoritário. Sobretudo, sustentava-se em uma visão de sociedade a ser moldada e conformada, dependente de uma elite armada do “projeto adequado”, e que hoje perdeu lugar na percepção pública de democracia. Antigamente, a escola e a prática do poder estatal gozavam de uma certa afinidade eletiva, buscavam impor a ordem desejada sobre a realidade rebelde.
Hoje, porém, a inclusão, a universalização do ensino, as políticas de ciclos de aprendizagem e todas as demais reações ao fracasso escolar dão expressão a um lugar que pode contribuir melhor para construir cidadãos enraizados numa comunidade livremente escolhida e, mais importante, aberta a outra ordem de valores que não os do cotidiano político e econômico. Talvez três décadas de tentativas nem seja tanto tempo assim para uma mudança tão grande e fundamental.