Liberdade que para homens pretos e mulheres pretas, sempre tarda

Leandro Rezende

Em uma célebre passagem de sua obra 1984, o escritor George Orwell diz que “Quem controla o passado, controla o futuro; quem controla o presente controla o passado”. Por mais que muitos digam que a história da escravidão do povo preto no Brasil tenha ficado no passado, sua herança é presentificada em cada caso de racismo, em cada assassinato de um homem preto pela polícia, em cada mãe solo da pele preta que chora por um(a) filho(a) encarcerado(a) ou morto(a), em cada pesquisa sobre a diferença salarial, acesso à educação, saúde, habitação entre brancos e negros, em cada morador de rua e dependente químico. Uma disputa para controlar passado e presente feita em forma de declaração de guerra por parte da “elite” branca que busca sustentar a todo instante sua herança de colonizador, sobretudo em seu “trabalho” cotidiano para reescrever o passado e prescrever o presente do povo preto que saiu da escravidão moderna da Casa-grande e da senzala para cair na escravidão contemporânea do assalariamento e do trabalho informal. Disputa que encontra os meios mais sórdidos para sua demonstração de força, pois aparece mesmo em materiais didáticos de escolas públicas, cuja maioria do público é composta de crianças e adolescentes pobres e afrodescendentes – portanto, algo que não é mera coincidência.

Na semana em que comemoramos o dia internacional pela eliminação da discriminação racial (21/03), precisamos rememorar um fato ocorrido no estado de Minas Gerais, a partir dessa relação entre educação e luta contra a dominação racista do passado e do presente do povo preto.

Em um passado menos distante do que os poucos mais de cem anos da abolição formal da escravidão de afrodescendentes no Brasil, a atual gerência empresarial-liberal que ocupa o governo do estado de Minas Gerais impôs à rede estadual de ensino um material supostamente “didático” comemorativo dos 300 anos de Minas Gerais. Apesar de sua pretensão em enaltecer a “cultura mineira”, o material chama atenção pelo uso de um falso dilema: “economia ou escravidão” – na esteira do contexto de pandemia de covid-19 então vigente, cujo horizonte reacionário impulsionado pelo regime que ocupava o governo federal emplacou o falso dilema “economia ou saúde”.

Talvez seja emblemático a “gestão” dos liberais – que pouco inova quando o assunto é demonstrar sua inspiração escravocrata e neofascista – ocupante do governo do estado cuja bandeira é marcada pelo lema Libertas quae sera tamen, traduzido comumente por “Liberdade ainda que tardia”, impor a alunos e alunas da educação pública estadual a confecção de uma carta sobre um suposto “orgulho mineiro”, a partir da imposição dos materiais de seu “ensino remoto” à discentes e docentes. Uma “gestão” que prega liberdade, mas que, mediante seu material comemorativo, impõe uma celebração a uma cultura mineira e a uma história mineira miscigenadas com requintes de uma “democracia racial”, semelhante à apresentada em Casa Grande & Senzala de Gilberto Freyre. História que tergiversa sobre os processos de dominação atuantes.

Contudo, assim como os inconfidentes que, na Inconfidência mineira (1789 – 1792), cunharam o lema da bandeira do Estado de Minas Gerais baseando-se na primeira Écloga do poeta romano Virgílio (70 a.C. – 19 a.C.), reivindicaram liberdade à capitania de Minas Gerais em relação ao domínio da coroa portuguesa, mas “não se atentaram” por estender essa liberdade tardia e conquistada a mulheres pretas e homens pretos, ambos escravizados, o material comemorativo dos 300 anos de Minas Gerais preparado pelos “especialistas” da secretaria de educação da gerência empresarial-liberal “não se atentou” para o fato de que não existe contribuição em meio à escravidão, não existe contribuição por parte de uma pessoa escravizada, mas apenas usurpação, espoliação, extorsão, imposição, julgo, estupro, objetificação, violência e morte. Contribuir pressupõe certa liberdade de escolha, algo totalmente vedado à alguém escravizado.

Tanto a insurreição burguesa dos inconfidentes que conquistou liberdade para uma burguesia autóctone de proprietários escravocratas, mercenários bandeirantes e militares, quanto certo desenvolvimento urbano, econômico, cultural e tecnológico que trouxe o “progresso” ao Estado de Minas Gerais foram edificados mediante a destruição dos corpos, da cultura e da vida de mulheres pretas e homens pretos sequestrados no continente africano para serem escravizados e mortos pelo colonizador branco em seu projeto ultramarino de acumulação primitiva de capital. Um projeto assessorado pelas burguesias de descendentes europeus locais que se formavam nas colônias, orgulhosos de seus sobrenomes.

E assim percebemos que a prioridade econômica, a preocupação com a economia trazida pela dogmática liberal, atualmente é propagada em seus falsos dilemas e já possui mais de 300 anos. História que também registrou debates políticos ocorridos no fim do século XIX, entre uma “elite” dividida entre abolicionistas e escravocratas, sobre os “prejuízos econômicos” da abolição da escravidão de afrodescendentes na idealizada república. A história dos vencedores impregnada em uma cultura marcada por um passado colonial, legitimada há tempos em processos de “educação” e reafirmada em materiais “didáticos” a serem disseminados no ensino público. História em que os escravizados “contribuíram” com “sua parte” na escravidão, com sua força de trabalho, sua cultura, seu conhecimento técnico, como se essa “contribuição” não tivesse sido arrancada à força e à ferros.

É a gênese dos “colaboradores” da escravidão contemporânea do trabalho produtivo assalariado, com base em uma ideia eugenista, trazida e revisitada por muitos liberais na história do ocidente, tirada dos manuais racialistas da modernidade europeia. Um tipo de “racionalidade” em que a escravidão teve importante papel para o progresso das sociedades, para o desenvolvimento cultural, e para o progresso da humanidade. Para uma sociedade, uma cultura e uma humanidade brancas e eurocêntricas.

Se Minas Gerais é repleta de tradições, entre tradições culturais impostas pelo colonizador branco e tradições mantidas como símbolo de luta e resistência por povos africanos e povos originários, ainda teima a manutenção de certo tradicionalismo imposto por uma burguesia local, herdeira da Casa-grande de nosso passado colonial. Tradicionalismo cujo conteúdo é uma representação idílica de um passado em que a escravidão, depois de 300 anos, pode vir a ser minimizada devido a sua “contribuição positiva” para a história do Estado, sobretudo para “nossa economia” e “nosso desenvolvimento” – um nosso que nos exclui enquanto pobres e pretos até os dias de hoje.

Escravidão cujos impactos ainda sofremos, seja na desigualdade social entre negros e brancos, marca do Brasil e do Estado de Minas Gerais, seja nas manifestações cotidianas de racismo com a pele preta, com os traços pretos, com a cultura preta, com a história preta. Ou seja, se como negros e indígenas, somos reconhecidos por nossa contribuição na riqueza cultural da história de Minas Gerais, fomos totalmente alijados da riqueza econômica produzida – por nós – nesses 300 anos.

Nesse ponto, talvez a ideia de “modernidade” trazida pelo tido material comemorativo – há o que se comemorar? – para caracterizar Minas Gerais esteja condizente com o projeto de modernização imposto pela colonização europeia a outros continentes, marcado pela escravidão, usurpação e assassinato de povos subalternizados e objetificados em seus corpos, sua cultura, sua história, assim como por uma liberdade seletiva. Liberdade que para homens pretos e mulheres pretas, sempre tarda.


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