Martha Ramírez-Gálvez
Após o STF julgar a inconstitucionalidade de diversos projetos de lei que tentam barrar o conteúdo de gênero e sexualidade nos programas de educação; e após a CPI da pandemia colocar em evidência não só a inaptidão da administração atual, como também as falcatruas na aquisição de vacinas, pareceria que os legislativos municipais se ocupariam com questões mais prementes para o país do que o espantalho da “ideologia de gênero”.
No entanto, o tema voltou recentemente na Câmara Municipal de São Paulo, onde empreendedores morais ultraconservadores esbravejaram com a aprovação de uma política municipal de economia solidária que fomenta a criação de cooperativas, na qual enxergam uma nova conspiração para a promoção da chamada “ideologia de gênero”.
Segundo a matéria do The Intercept Brasil, dois artigos do projeto teriam ascendido o alarme: um deles se refere à promoção de direitos humanos, com equidade de gênero, geração, raça/etnia, orientação sexual e identidade de gênero. O outro, menciona a abordagem interdisciplinar dos princípios da Economia Solidária na Rede Municipal de Educação (FILHO, 2021).
O proponente do projeto, vereador Eduardo Suplicy (PT), explica que a referência no projeto aos direitos humanos visa evitar situações de violência ou discriminação entre as pessoas cooperadas. Para além da disparatada aversão, entre alguns ocupantes do poder legislativo no país, da palavra gênero (inclusive de gênero alimentício), vale a pena indagar a moralização sexual de um projeto sobre economia solidária, proposto por vereador de um partido de esquerda, o que não é apenas um detalhe.
A retórica anti-gênero, condensada na chamada “ideologia de gênero” é analisada como dispositivo de mobilização de pânicos morais (CORRÊA e KALIL, 2020), que tem permitido a emergência de empreendedores morais numa esdrúxula combinação entre moralidade sexual, neoliberalismo e anti-comunismo como projeto de poder.
A origem da cruzada transnacional anti-gênero, iniciada por setores conservadores do Vaticano e acolhida por outras comunidades religiosas, já tem sido amplamente analisada em publicações brasileiras e internacionais. Interessa, neste curto espaço, trazer algumas das reflexões de Wendy Brown sobre a relação entre racionalidade neoliberal, fundamentalismo religioso e anticomunismo para pensar a demonização do social e do político que redunda em ataques a programas que visam corrigir, minimamente, as injustiças sociais. Tal junção teria como resultado a transformação da moralidade tradicional em arma de batalha política anti-democrática (BROWN, 2019, p. 10).
A ideia do “social”, no neoliberalismo, é aquilo a ser destruído conceitual, normativa e praticamente, sendo a luta pela justiça social vista, também pela direita, como agenda tirânica. A junção de neoliberalismo, fundamentalismo e “libertarianismo” converge no ataque ao social e na geração de uma “cultura antidemocrática desde baixo, ao mesmo tempo em que constrói e legitima formas antidemocráticas de poder estatal desde cima”. A política, na chave de cultura antidemocrática e poder estatal antidemocrático, adquire posicionamentos extremos e a liberdade toma a forma de ruptura e inclusive destruição do social (BROWN, 2019, p. 39).
A tese da autora é que o neoliberalismo não visa, apenas, a expansão do poder de capital, mas também se torna inspirador e legitimador da extrema direita, ao mobilizar um “discurso de liberdade” sob o qual são justificadas exclusões e violações em prol de uma hegemonia branca, masculina, cristã e burguesa. Em paralelo, a esquerda moderada ou liberal, que teria como projeto político a justiça social, é responsabilizada pelo esgarçamento do tecido moral, tornando o Estado democrático um inimigo a enfrentar, uma vez que ameaça um ordenamento hierárquico fundamentado seja na criação divina ou na capacidade e liberdade individual para a escalada social. Assim como o Estado não deveria se imiscuir no funcionamento do mercado, tampouco deveria fazê-lo na esfera moral: “…o neoliberalismo hayekiano é um projeto político-moral que visa proteger as hierarquias tradicionais negando a própria ideia do social e restringindo radicalmente o alcance do poder político democrático nos Estados-nação” (BROWN, 2019, p. 23).
A partir dos argumentos anteriores, muito superficialmente apresentados, pode se compreender a “ideologia de gênero” como dispositivo de poder, que transcende a discussão de gênero propriamente dita. Esse termo, ferramenta muito flexível, condensa complexas questões políticas sobre uma concepção particular de ordenamento social, que serve como estratégia de ataque a projetos como o de economia solidária, dentre outros, que procuram fomentar a igualdade social e econômica. Em última instância, a qualquer projeto que se oponha ao “libertarianismo” e à manutenção dos privilégios e a hegemonia de certos grupos no poder.
1Antropóloga – Docente do Departamento de Ciências Sociais – Universidade Estadual de Londrina. Integrante do grupo Entretons: gênero e modo de subjetivação.
Para saber mais:
BROWN, Wendy. Nas ruínas do neoliberalismo. São Paulo: Editora Filosófica Politeia, 2019
CORRÊA, Sonia; KALIL, Isabela. Políticas antigénero en América Latina: Brasil -¿La catástrofe perfecta?. Rio de Janeiro: SPW, ABIA, 2020
FILHO, João. Prefeito de SP cai na mentira bolsonarista e promete vetar artigo da lei de economia solidária. The Intercept Brasil. 11 de julho de 2021. Acesse aqui.
MIGUEL, Luís Felipe. “Da ‘doutrinação marxista’ à “ideologia de gênero”: Escola Sem Partido e as leis da mordaça no parlamento brasileiro. Direito e Práxis. Rio de Janeiro, v.7, n.15, 2016.
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