Lágrimas de uma professora

Patrícia Gonçalves Nery

A professora tem mais de vinte anos de experiência na docência, sendo que o maior tempo dedicado à educação tem sido na escola pública. Entretanto, apesar de sua enorme experiência ou em razão dela, diante de uma turma de 4º ano, com crianças entre 8 e 10 anos, ela se curva, desaba e chora.

São crianças que estavam no período da alfabetização quando a Pandemia provocada pela COVID-19 nos tomou de sobressalto e nos desvelou uma realidade dura e sofrida. Nesse momento, as aulas presenciais foram suspensas e a retomada do ensino, na modalidade remota, ocorreu no sistema público municipal de Belo Horizonte mais tardiamente. Portanto, essas crianças que hoje frequentam o 4º ano não tiveram a chance de serem alfabetizadas na escola. As atividades impressas e as poucas aulas ministradas por chat, durante o ensino a distância, não foram, minimamente, suficientes para que elas avançassem na aprendizagem da leitura e da escrita.

A alfabetização, ato ou efeito de alfabetizar, não se realiza sem a ação de quem se alfabetiza. Tem-se aí o ato criador ou de criação, nos termos de Paulo Freire (2001), que tem no alfabetizando o seu sujeito. É no encontro dos sujeitos da alfabetização, de quem ensina e de quem aprende, que o ato de criação acontece. Nesse sentido, a presença mediadora da professora com sua atuação atenta, diversificada e criativa é capaz de potencializar o processo de aprendizagem da língua escrita.

Para muitas crianças, a ambiência agradável, respeitosa e ao mesmo tempo pulsante e motivadora faz muita diferença na hora de aprender a ler e a escrever. Para todas elas, é necessário a disposição do corpo, da mente, do espírito, ensejados na vontade de aprender.

Para as crianças que integram a turma do 4º ano, muito disso não se realizou. Não houve a mediação necessária para que a compreensão e apropriação do SEA ocorresse, nem as ambiências e as indispensáveis disposições dos sujeitos da aprendizagem.

Na volta às aulas presenciais, em razão de tantos desafios vividos coletivamente, durante a Pandemia, tínhamos a esperança de que voltaríamos em um patamar mais elevado de solidarização e humanização. Uma pesquisa anterior com crianças nos mostrou as vivências e as expectativas de um grupo de crianças com relação ao retorno às aulas presenciais. Elas evidenciaram a importância da escola na vida cotidiana como um espaço/tempo de sensibilidades acolhidas, de respeito, de aprendizagens e de valorização da dignidade humana. As crianças estavam desejosas de voltar para um lugar onde a vida pudesse vibrar em conjunto (NERY, 2020).

No entanto, assistimos a um retrocesso. A escola pública, na qual as crianças do 4º ano estudam, optou pela formação de uma turma projeto para receber as crianças que mais prejuízos tiveram na aprendizagem da leitura e da escrita, durante a Pandemia.

Velhas estratégias classificatórias, segregadoras e desumanizantes. A professora diz: “No início, todas estavam no mesmo nível de aprendizagem da escrita e da leitura”. A pretensa homogeneidade foi se perdendo ao longo do tempo. “E agora? Como conduzir o processo de aprendizagem das crianças diante de tantas dificuldades?”, lamenta a professora.

Reunir as crianças no mesmo grupo levando em consideração apenas a condição de estarem ou não alfabetizadas, subjaz todas as outras condições de existência das crianças, sejam elas sociais, mentais, emocionais, cognitivas, assim como suas experiências e vivências cotidianas. Mais uma vez, estamos diante de uma visão adultocentrada e homogeneizadora de crianças, de infância e de educação.

As velhas práticas se impõem, sustentadas por novas crenças. A professora chora, porque muitas crianças, ali reunidas, se agitam, se distraem, se perdem e pouco trabalho pedagógico se realiza. Outras tantas se recolhem, como diz a professora, pouco falam, pouco participam. Porém, todas crescem, assim como a vontade de aprender a ler e a escrever.

Para saber mais
Texto construído a partir da pesquisa de campo realizada no âmbito da pesquisa “Os (re) encontros entre professoras e crianças, no ensino presencial, pelas leituras e pelas escritas, em uma turma de alfabetização, no contexto da Pandemia provocada pela COVID-19”, que tem o apoio da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG).

FREIRE, Paulo.  A importância do ato de ler: em três artigos que se completam.  São Paulo, Cortez, 2001.

NERY, Patrícia Gonçalves. Hora da roda: as experiências cotidianas das crianças no contexto da Pandemia. Linhas Críticas, v. 26. Disponível em:

https://periodicos.unb.br/index.php/linhascriticas/article/view/36176. Acesso em: 26 mar. 2023.


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