La Révolution: uma alegoria do tempo presente?

Evelyn de Almeida Orlando

A praga do tempo são os loucos liderando os cegos (Guy de Montargis)

Na última sexta-feira, dia 16 de outubro de 2020, foi lançada pela Netflix a série La Révolution que trata, nesta primeira temporada, de alguns episódios que desencadearam a Revolução Francesa. Ambientada em um condado próximo de Paris, a trama aborda as tensões que se estabelecem entre a nobreza e a população, acentuadas com a disseminação do que se entende como uma “doença”, curiosamente intitulada “sangue azul”, que se dissemina entre os nobres e os leva a dizimar a população de forma brutal. Preciso adiantar aqui que este texto pode trazer alguns spoilers. Portanto, se você, leitor, é do tipo que não gosta de spoiler, pause este texto, corra para assistir a série e, depois, continue a leitura.

La Révolution traz, alegoricamente, uma outra possibilidade narrativa sobre este episódio. Apesar da mistura entre história e ficção que orienta a narrativa, mesclada por doses do que alguns leriam como terror, a condução da narradora e a própria trama nos provocam algumas reflexões.

A primeira é sobre o conceito de verdade histórica. O que sabemos nós, de fato, dos acontecimentos históricos? O que nos escapou? O que foi produzido discursivamente como acontecimento? Que outras histórias a história vencedora encobre? A série começa com essa provocação: Dizem que a história é escrita pelos vencedores. Mas não dizem que ela é reescrita com o tempo. Transformada pelos livros. Reinventada por quem não a viveu. E me conquista já nas primeiras cenas.

A segunda é sobre protagonismo feminino. Quem sobrevive para contar a história é uma menina. A única possibilidade de um governo mais justo no Condado de Montargis, local onde a trama se desenrola nesta primeira temporada, é através de Élise, a condessa de Montargis; a líder da oposição é Marianne (uma alegoria do símbolo da revolução francesa e, na série, uma mulher pobre, machucada ao extremo, forte, destemida e sem nada a perder).

A terceira questão está relacionada a outra pergunta: Até onde vai a ambição dos poderosos? Na trama, o projeto era disseminar a doença entre os nobres com o intuito de preservar um reinado absoluto. Esse deveria ser um segredo e os pobres jamais poderiam vir a descobrí-lo. O que o vírus daria a quem o tivesse correndo em suas veias? Força descomunal, imortalidade, poder. E quais os efeitos colaterais? Uma fome descomunal que leva à perda das referências da dignidade humana, assemelhando seus portadores a animais selvagens ou pior. Isso, no entanto, não parece ser um grande problema para o idealizador do projeto que, na série, é ninguém menos que o rei da França. Só duas pessoas parecem se incomodar mais com os prejuízos do que com os benefícios deste “privilégio”: o conde de Montargis, que se percebe usado pelo rei em um projeto insano e sanguinolento; e, Albert Guillotin, o único pobre infectado, de maneira misteriosa, com o sangue azul.

A quarta questão nos remete à miséria do sistema capitalista. Não estou sugerindo aqui que a ficção produzida tenha algum sentido histórico, mas, sem dúvida, ela passa metaforicamente por um conjunto de questões que nos provocam a olhar para as mazelas que antecederam os episódios que desencadearam a Revolução Francesa com aproximações em relação ao nosso tempo presente. Em que pese a alegoria dos mortos-vivos e a caricatura de algo que poderíamos assemelhar a zumbis inteligentes, o que dá o tom ficcional da obra, a metáfora dos mais ricos se alimentando, literalmente, dos mais pobres nos permite pensar na lógica do sistema capitalista, na degradação que ele provoca, na perversidade deste projeto, assim como em seu esgotamento em si mesmo.

O recurso – neste caso, os pobres – não é inesgotável e nessa lógica há apenas duas saídas: a passividade que os levará à morte cruel, devorados pelos mais poderosos; e a revolta que os levará possivelmente também à morte, mas com alguma chance de mudar essa configuração, provocando quiçá uma mudança na estrutura política, econômica e social.

Assumindo que a segunda alternativa tenha êxito, o que significaria essa mudança de configuração? Se, na prática, representar apenas a alternância do grupo no poder sem mudar a lógica que organiza a essa estrutura, a pergunta que fica é: o que esses oprimidos habituados à dor, à violência, à ridicularização, ao menosprezo, ao desdém, farão diante dos seus antigos opressores?

Minha vida toda, vi homens serem humilhados. Vi escravos sendo ameaçados, mulheres sendo jogadas na lama. Senti essa raiva silenciosa dentro deles. Todo dia, eu a vi crescer em seus corações. O que os líderes não sabem é que, um dia, essa raiva vai acabar. Não é uma previsão, é uma certeza. E as vozes de milhares de pessoas anônimas se erguerão e dirão: “Não, não vou mais me render”. E os escravos de ontem serão os rebeldes de hoje.

A tomada da Bastilha, tema provável da segunda temporada da série, pode ilustrar bem esse cenário. Embora a Revolução Francesa contenha elementos que ilustram razoavelmente o que estou ensaiando e não por acaso seja o mote central da série, essas questões vão se desenhando ao longo da trama e instigando uma leitura que extrapola o tema central e nos permite vislumbrar um futuro em que a “tomada do poder”, a inversão dos lugares e dos atores sociais nesse jogo, não é suficiente para a construção de uma sociedade efetivamente mais justa e igualitária. Para onde estamos caminhando? Esta pode ser a pergunta que fica com a última cena – quando o povo marcha resoluto rumo à Paris – levando-nos a desejar, em um misto de ansiedade e certo desolamento, a segunda temporada.


Imagem de destaque: Distribuição Netflix

 

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