Juventude, cárcere e a EJA como possibilidade livre.  

Douglas Tomácio

Nós precisamos procurar saída onde não tem porta. Se formos procurar saída onde tem porta feita vamos continuar cativos”. (Fala de um agricultor, presente no prefácio da obra Psicologia e Contextos Rurais, 2013).

“Qual é o problema que trouxe para nós dessa vez?”

(Dizeres de “boas-vindas” da equipe gestora quando da matrícula na EJA de um jovem em privação de liberdade)

E assim, sob a alcunha de “problema”, o cárcere se apresentava também nos espaços ditos de fora. Nos ares da tal liberdade, estava a EJA com quês de compreensões encarceradas; cativa quanto às possibilidades suas de enfrentamento, presa no discurso que vorazmente reduz sujeitos a delitos e perpetua um ambiente escolar voltado a poucos.

Uma escola que, erigida pelas ferramentas do mestre e nelas se subvencionando (1), longe está de fornecer os caminhos para seu desmantelamento: apegamo-nos à exclusão, e o fizemos também quando as faces desta expressam jovens em privação de liberdade. Ou seriam delitos com intuitos incompreensíveis de formação?

E aqui fica mais um dos desafios tantos para a multifacetada EJA: como pensá-la quando quem corpo a ela dá enquanto sujeito concreto é um jovem em privação de liberdade? Que comunicação pode a escola pública fazer com este sujeito em seu lugar de educando?

Por não raras vezes, as faces juvenis que à EJA adentram assumem especificidades que preferimos rechaçar. Em nossa ignorância, construímos e reforçamos o ciclo da exclusão, em vez de lutar pela garantia da educação desses que, já marginalizados, amargam a EJA em recusa: recusa quanto ao seu papel formativo; quanto ao dever que tem de colocar-se como espaço para e de todos; quanto ao entendimento do direito de alguém, que ainda hoje sequer sujeito é em sua ótica.

Parece mesmo que para alguns o cotidiano delineado é de uma EJA especialmente mais frágil e genérica, incapaz do trato para com as diferenças suas. A esses jovens desvalidos e privados, um espaço mais de não escuta se dá. Ratificamos práticas escolares de invisibilização e, assim, tecemos um fazer pedagógico ainda distante do que se poderia pensar enquanto proposta de projeção do futuro, do planejamento de vida que sabidamente se deve relacionar com o universo juvenil, como propõe Analise da Silva, e que poderia amplo impacto ter nessas juventudes em cárcere.

Aprisionados (e aprisionando-os) por nossas incompreensões, nos esquecemos de que são eles jovens que, em si, apresentam o desafio histórico da educação brasileira. Falamos de indivíduos majoritariamente originários de famílias de baixa renda, advindos do ciclo de pobreza e precariedade que atravessa gerações (TAMAROZZI, 2009), sujeitos que construíram as vivências possíveis nos altos índices de marginalização; os quais resvalaram em repetências acumuladas, interrupções na vida escolar e, ainda, na privação de sua liberdade.

Uma vez tendo eles a possibilidade de retomada da vida escolar por meio da EJA, é importante que esta se configure como espaço dialógico, de garantia de um direito ao qual a imensa maioria não pôde efetivamente acessar. Um lugar que, abrigando-os, coloca-se na assertiva e acurada escuta, em acolhida de interesse que se pode sentir e que longe está do discurso legalista ansioso em (re)criminalizar. Que seja EJA como possibilidade livre.

Dessa forma, em diálogo com as experiências vivenciais que denotam, preciso é que juntos reconstruamos a significância do espaço escola, os sentidos que o educar pode a eles ter, a EJA enquanto modalidade devidamente pensada, capaz de ofertar alternativas a esses jovens que experienciam sonhos em liberdade transformadora. Para tanto, é preciso compreender que o problema aqui não é “dessa vez”, mas sim histórico, estrutural e perpetuado cotidianamente.

 

Nota
(1) Aproprio-me aqui da referência construída por Audre Lorde, feminista, poetisa e ensaísta estadunidense que, em suas próprias palavras, definia-se como “negra, lésbica, mãe, guerreira, poeta”.

Sobre o autor
Historiador, Pedagogo. Professor do Departamento de Educação (DE-Ibirité) e da Faculdade de Educação (FaE) da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG). E-mail: dtlmeduc@gmail.com

Para saber mais
DA SILVA, Analise de Jesus.  Na EJA tem J: Juventudes na Educação de Jovens e Adultos. 1. ed. Curitiba: Appris Editora, 2021.

LEITE, Jader Ferreira (Org.) ; DIMENSTEIN, M. (Org.). Psicologia e Contextos Rurais. 1. ed. Natal: EDUFRN, 2013.

TAMAROZZI, Edna.; COSTA, Renato Pontes. Educação de Jovens e Adultos. 2 ed. Curitiba: IESDE BRASIL S.A., 2009.


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