Intersexualidades e educação

Amanda de Almeida Schiavon*
Thais Emília de Campos dos Santos**

O campo de disputas que envolve as questões relacionadas à intersexualidade tem deixado uma lacuna no que diz respeito à educação. Tal lacuna é evidenciada pela falta de conhecimentos e informação popular acerca da intersexualidade, o que nos leva a ter que localizar, em qualquer fala ou escrita, de que sujeitos estamos falando quando nos referimos ao intersexo. Portanto, intersexualidade diz respeito a corpos que, biologicamente, escapam do padrão estabelecido para um corpo sexuado binário, feminino ou masculino. Ao mencionar a biologia, nos referimos a características sexuais tais como órgãos genitais e reprodutivos, anatomia sexual e questões genéticas e hormonais.

Com o intuito de situar a lacuna no campo da educação, se faz necessário localizar a rede que compõe o campo de disputas institucionais que, de certa forma, se beneficia da “ausência” de saberes educacionais acerca de diversidades corporais. Os conhecimentos e informações a respeito da intersexualidade ainda são fortemente pautados pelo saber biomédico, os quais se inserem pela via da patologização. De modo hegemônico, o campo biomédico, no Brasil, tem concebido, assim, essa diversidade corporal enquanto uma corporalidade anômala e tem defendido a necessidade de intervenções cirúrgicas precoces em bebês intersexo com vistas a definição de um sexo binário.

Em contraponto, o ativismo político Intersexo Nacional e Internacional – como a Associação Brasileira Intersexo, Brújula Intersexual, interACT: Advocates for Intersex Youth -, tem como principais pautas de lutas: 1) o adiamento de procedimentos cirúrgicos até que o sujeito possa consentir e; 2) a não necessidade do estabelecimento de um sexo binário (menino/menina) no registro de nascimento de bebês. Tendo em vista o segundo ponto de luta do ativismo, o campo jurídico passa a se inserir nesses embates, por vezes aliado ao movimento social, por vezes ao saber biomédico. As famílias, por sua vez, costumam ter o primeiro contato com a intersexualidade do bebê mediado pelo saber biomédico e transposto em forma de aliança pela possibilidade dos responsáveis participarem dos processos de decisões das intervenções para definição de um sexo binário. Tal fato influencia diretamente na forma como os familiares irão perceber a corporalidade da criança, enquanto anomalia ou enquanto diversidade.

Embora possa parecer que o campo da educação não se insere nessa rede de produções e disputas, implicitamente (ou nem tanto), tal campo produz saberes que reiteram a binariedade em relação a sexo/gênero. E é justamente essa pressuposição de corpos naturalmente binários que justifica a realização de intervenções precoces e violadoras de direitos em crianças intersexos. Em relação a isso, estamos há um tempo sofrendo ataques diretos à uma educação brasileira que se pretende mais libertadora, desde a construção de uma ofensiva anti-gênero e de uma escola sem partido até as últimas decisões no que se refere a uma educação “inclusiva” segregacionista.

Em uma discussão recente que participamos sobre gênero e educação, em um grupo de estudos online que aborda as relações de gênero e sexualidade nas infâncias, surgiu a seguinte pergunta: “como construir uma educação que fuja dos padrões binários?”. Antes de respondê-la, precisamos perceber a forma como a binariedade estrutura a sociedade como um todo, informando as práticas educacionais, biomédicas, legislativas, entre outras, e a forma como cada prática institucional produz uma pedagogia dos corpos. A partir disso, faz-se necessário tomar consciência das práticas educativas cotidianas que essencializam e universalizam a binariedade performada nos corpos. Podemos citar como exemplo as produções de brinquedos e brincadeiras de meninos e meninas, assim como cores e roupas, os banheiros femininos e masculinos, organização em filas a partir da divisão sexual, práticas de esportes, dentre tantas outras. Essas produções também são reiteradas no ensino de biologia, na qual aprendemos que existem somente dois corpos diversos possíveis, macho e fêmea. Nessas práticas, essencializa-se uma natureza binária que reprime a possibilidade de corpos e subjetividades que não se enquadrem nesta norma.

Dessa forma, a intersexualidade se insere também nessa pauta de uma ofensiva anti-gênero enquanto estado de exceção, um corpo que deve ser consertado. Ao mesmo tempo que tal ofensiva objetiva impedir pautar gêneros diversos nas escolas, ela naturaliza a binariedade (macho/fêmea; homem/mulher; masculino/feminino) e linearidade entre sexo, gênero, identidade e desejo. Nesse sentido, ao postular uma norma cis e heterossexual, como se fosse intrínseco a natureza, o corpo intersexo passa a ser uma exceção à essa regra e, portanto, é visto como um corpo que precisa ser corrigido para “tornar-se natural”. Ou seja, para integrar pessoas intersexo em uma educação cisgênera e heterossexual seu corpo é modificado sem consentimento de acordo com modelos binários.

Ressaltamos a necessidade de políticas e práticas escolares e educativas que afirmem, enquanto corpos possíveis, as diversidades corporais, sexuais e de gênero, seja no âmbito do ensino regular ou superior, entre estudantes, funcionários e professores. Práticas essas que irão reverberar, a longo prazo, nas relações sociais e familiares, na busca pelo respeito e não discriminação das diversidades, assim como na eliminação das violências e violações perpetuadas. Com isso, nos alinhamos a uma concepção de educação enquanto prática de liberdade, que tenha como mote a construção do pensamento crítico, da autonomia para autodeterminação e do reconhecimento da agência dos sujeitos independente classificações desenvolvimentistas.

*Amanda de Almeida Schiavon – Psicóloga, Mestranda em Psicologia Social e Institucional – UFRGS.

**Thais Emília de Campos dos Santos – Doutora e Mestre em Educação – UNESP. Psicopedagoga Esp. Educação Inclusiva – SEEESP/USP e habilitada em Educação Especial – UNESP. Presidente da Associação Brasileiro Intersexo – ABRAI.


Imagem de destaque:  Sharon McCutcheon / Unsplash

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