Incluir é mais que abrir portas

Antônio Augusto Lemos Rausch*

Nos Estados Unidos, o debate sobre a inclusão de estudantes trans se dá em torno da Title IX, uma lei que compõe a Emenda Educacional de 1972. A Title IX é uma lei federal que veta a discriminação em função de sexo nos programas educacionais ou atividades que recebam financiamento federal, salvo nas exceções previstas, como nos processos de admissão de faculdades ou universidades separatistas. Desde 2013, as Women’s Colleges (WOC) começaram a revisar suas políticas de admissão para inclusão de estudantes transgênero. Uma vez que os estados possuem diferentes critérios para a realização da mudança nos registros de nascimento previstos em suas legislações, a exigência dos registros de nascimento retificados se tornou um problema. Como grande parte das e dos estudantes que se inscrevem são jovens, estas podem não estar legalmente aptas para realizar a retificação dos registros, ou não ter condições financeiras de arcar com os custos de procedimentos médicos muitas vezes requeridos.

Desde 2017, os programas e legislações protetivas de discriminação em função de gênero sofrem diversos ataques e afrouxamentos. A ampliação promovida pelos governos Obama nos EUA do reconhecimento do gênero é alvo constante da administração Trump. Em matéria publicada no final de 2018, o The New York Times revelou que o Departamento de Saúde e Serviços Humanos estaria se preparando para estabelecer diretrizes que restringiam o reconhecimento do gênero à designação no nascimento, o que poderia interferir diretamente no acesso de estudantes trans aos dormitórios, banheiros, além de impedir a entrada nas instituições separatistas. A justificativa adotada pela administração é de que as agências do governo deveriam adotar definições de gênero explícitas e uniformes, determinadas em “bases biológicas que sejam claras, fundadas cientificamente, objetivas e administráveis”.

O exemplo estadunidense, apesar de restrito a um modelo educacional privatista, nos aponta que a inclusão de estudantes trans deve acontecer para além do momento de entrada, e deve produzir ações que garantam a permanência como integrantes do corpo discente. É preciso estabelecer os procedimentos administrativos de reconhecimento de nome, de uso dos banheiros, de regulação dos dormitórios e moradias. Também é necessário investir na formação dos profissionais e criar estratégias de combate ao preconceito e violência institucionais, perpetuadas administrativamente e por parte de estudantes. Considerando a vulnerabilidade econômica de muitas destas estudantes, as políticas de assistência estudantil ainda são fundamentais neste processo. Por fim, é indispensável reconhecer as formas de sociabilidade para além de olhares patologizadores e criminalizantes.

No Brasil, foram poucas as políticas de inclusão específicas para a população trans nos espaços educacionais. Em 2018, foi publicada a resolução nº 1/2018 do CNE que prevê o uso do nome social na educação básica. Além disso, foram identificadas ações de reservas de vagas para pessoas trans em 12 universidades federais, concentradas em programas de pós-graduação. Em 2019, a Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB) publicou um edital reservando 120 vagas de graduação ociosas para pessoas trans, mas sofreu intervenção direta do Ministério da Educação que suspendeu o processo. No ano seguinte, o pastor Roque Albuquerque foi nomeado pelo presidente da república como reitor da Universidade. O conservadorismo dentro do governo ainda é um desafio a ser enfrentado.

Frente a isso, precisamos nos atentar que uma grande parcela das trajetórias trans e identificações não estarão contempladas em definições objetivas e administráveis pelos governos. Ao pensar a expansão das políticas de inclusão, também precisamos reconhecer a fluidez das experiências do gênero, e as possibilidades múltiplas de experienciá-lo cotidianamente. Caso contrário, assumimos o risco de continuar excluindo dos espaços de educação as pessoas cujas histórias e narrativas não se enquadram em ideais normativos e cissexistas. Um exemplo disso são as tentativas de restringir as políticas de inclusão às pessoas trans que tenham realizado alterações médicas ou jurídicas, ou outras formas de constrangimento formal.

Referências

NANNEY, Megan; BRUNSMA, David L.; Moving Beyond Cis-terhood: Determining Gender through Transgender Admittance Policies at U.S. Gender & Society. 31 (2), abril 2017.

GREEN, Erica L.; BENNER, Katie; PEAR, Robert. ‘Transgender’ Could Be Defined Out of Existence Under Trump Administration. The New York Times. Nova Iorque, NY. 21 out 2018.

MAIA, Dhiego. Ao menos 12 universidades federais do país têm cotas para alunos trans. Folha de São Paulo. 20 maio 2019. São Paulo, SP.

G1. Vestibular anulado da Unilab para pessoas trans vai de encontro à Lei de Cotas, diz universidade. 16 jun 2019.

APUFSC. ADUFC denuncia nomeação de mais um reitor interventor no Ceará. Florianópolis, 13 jun 2020.

* Psicólogo, integrante do Nuh/UFMG – Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBT


Imagem de destaque: pxhere

 

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