Hipotermia social e nossas salas de aula

Prof. MSc Leonardo Eustáquio

29 de janeiro de 2022. Este foi o dia da morte do fotógrafo suíço René Robert, 89, que passou nove horas caído no chão da rua Turbigo, em uma movimentada Praça da República em Paris. Não era um morador de rua, talvez, por isso, tenha gerado alguma notícia o fato de ter morrido na contramão atrapalhando o tráfego(1). O cidadão, provavelmente, tenha escorregado e ficou desacordado em uma noite de frio suficiente para encerrar sua vida. Mas quantas pessoas passaram pela mesma rua e, de alguma forma, se deram conta de um corpo caído? O que pensaram com a cena? A imaginação foi de que aquele corpo se acabou no chão feito um pacote bêbado?

Valorizar a dor do outro é fundamental para vivermos em uma sociedade. Agrupar os humanos foi um trabalho evolutivo fantástico que gerou benefícios a todos que aceitaram se submeter às regras de convívio. E nessas regras precisam constar que devemos olhar o outro como olhamos para nós mesmos. Não por culpa ou um medo judaico-cristão, mas pela sobrevivência geral da espécie.

Esse fotógrafo, premiado e com longa dedicação à sua profissão, teve seu corpo abandonado até a morte sem causar preocupação aos transeuntes. Sua dor não reverberou dentro dos que poderiam ter tido alguma atitude e mudar o final daquela história com uma ligação para um serviço de emergência médica. Alguma coisa naquela cena não atiçou em ninguém a ação.

Podemos justificar que corpos espalhados nas ruas à noite são comuns. Temos a desculpa de dizer que achamos que ele estava dormindo e ninguém queria atrapalhar acordando a pessoa. Ou que acreditávamos que ele estava bêbado e, por isso, era melhor deixar ele ali dormindo sem incomodar ninguém, pagando por uma suposta culpa derivada de suas escolhas. Mas nenhum desses pretextos podem ser aceitos em uma sociedade que deseja continuar estruturada como uma comunidade que depende de um todo, que precisa dos demais para sua continuidade e solidez.

Entendo como essencial o aprendizado que projeta um futuro bom para todos. Um futuro em que eu possa ter uma vida confortável, compreendendo que, para isso, os demais também precisam de uma vida minimamente digna, ou toda sociedade vai desmoronar em algum momento. Refletir e perceber que em um mundo globalizado precisamos pensar globalmente e agir localmente, é preceito básico não só para ações ambientais, mas para ações humanas que possam construir um futuro coletivo.

Aqui entram aqueles profissionais que têm um grande poder de ação: os professores. E não estou me referindo a agregar uma tarefa a mais em nossa exaustiva profissão, mas em dedicar o aprendizado para além das regras básicas da matemática ou do português. A referência é aos educadores. Aqueles que ao falarem sobre a soma de 15 laranjas mais 25 laranjas, perguntem aos estudantes: vocês conhecem alguém que tem muitas laranjas e alguém que não tem nenhuma? Aqueles educadores que em ciências ensinam que é necessário lavar as mãos para não sermos contaminados por bactérias, mas que também reflete sobre os moradores de rua e como é complicada a higiene ao morar na rua? E o que levou aquela pessoa a morar na rua? Qual é a sua história? Eles têm uma história?

Estando em sala de aula, por volta de 2008, elaborei uma exposição de fotografias tiradas pelos estudantes e que fossem capazes de mostrar a desigualdade encontrada nas ruas. Um pai de aluno ligou na escola questionando se o professor estava louco pedindo que seu filho se aproximasse de um “pivete”. Por mais que fosse explicada a necessidade de reflexão, o pai continuou acreditando que seu filho não deveria se aproximar dessas pessoas. Que seu filho estará mais seguro se ficar longe de pessoas tão diferentes dele.

Não quero imputar a esse pai de família um crime. Compreendo seu temor. Não sei o quanto eu também temeria em me aproximar de algumas determinadas situações e simplesmente me afastaria, muitas vezes fingindo não ver. Todos somos limitados. Mas se estamos vivos, precisamos aprender, refletir e fazer o melhor de cada um de nós, crescendo aos poucos, mas constantemente. Como professor então, a sobrecarga é maior, já que temos à nossa frente tantos jovens capazes de aprender a melhorar um pouquinho do mundo à sua volta. Temos o poder questionador que desassossega o outro a ponto de se questionar, a ponto de fazer com o que outro deseje ser melhor ou ainda mais, que o outro faça todos os dias a melhor versão de si.

Acreditar em um mundo melhor é dar aos humanos um voto de que podemos aprender, melhorar e crescer coletivamente. Não há no mundo melhores profissionais para isso do que os professores e as professoras. Somos nós que podemos construir reflexões (não imposições) em sala de aula. Podemos acender em nossos estudantes o ânimo (manifestação de desejo, vontade, determinação diante da vida, coragem – como consta no dicionário Houaiss) de mudar o mundo que rodeia a cada um de nós.

 

Sobre o autor

Psicólogo e Diretor do Curso Integral de Madureza da Asa Norte (CIMAN)

Notas 

Como na canção de Chico Buarque, “Construção”, de 1971.


Imagem de destaque: Galeria de Imagens

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