– só a conexão com ciência aliviará o medo dos contágios letais –
“[…] – a gente passa a vida inteira feito bobo pra depois morrer que nem besta.“ (Charles Bukowski)
As ruas da capital, espaço que deveria referendar o lugar da consciência coletiva, atravessavam-se de pessoas em supérflua normalidade. A segunda-feira, em crise pela letalidade do vírus sem fronteiras, negava os apelos pela contenção social. Apelos que dividiam-se em intenção, prevenção, negação e incitação criminosa: uma das faces do caos reinventado.
Por detrás da janela – a porta de meu mundo físico nos últimos dias – senti a vertigem dos questionamentos: “Eles não sabem? Ignoram o perigo? Estou exagerando nos cuidados? São transgressores das regras polarizadas? Ignoram os riscos?”. Não sei resumir a contrariedade e a indignação do lugar de quem sabe o que não sabe. Contudo, a massa em deslocamento comprovava a indi/gestão das informações adulteradas. Também corroboravam os apelos que afogavam a ciência no grotesco leito da ignorância bruta: “A vida sem ciência é uma espécie de morte.” (SÓCRATES). Cenas de uma guerra de ocasião, palco do meretrício político, do narcisismo dantesco e criminoso.
— Filha, eu vou à igreja.
— Não, mãe. Óbvio que não sairá de casa. A senhora faz parte duas vezes do grupo de risco.
— A igreja é lugar de oração.
— E de possível contaminação!
— É a casa do Senhor. Lá não tem perigo.
— Mãe!!!
O gargalo dos conflitos familiares tinha raízes em outro plano: na garganta do governo indigesto, solapador de discursos solidificados na ignorância fatídica, nas monstruosas manipulações em prol do capital cuspidor de fogo: “Quem luta contra monstros, que se cuide para não se tornar monstro também.” (NIETZSCHE, 2005). E mantinha um pé nas mentiras robotizadas que, disparando “verdades”, vomitavam a voz do monstro, assumiam caráter versicular entre os que desconhecem o exercício do pensar, mantendo-os aferrados à alienação: outra fórmula mortal de fácil disseminação.
— Meus filhos, vão trabalhar! O Brasil não pode parar.
— Pai, pelo amor de deus! O isolamento é necessário para conter o vírus.
— Que vírus, que vírus? Isso é tudo uma conspiração para derrubar o nosso messias.
— Pai, isso tem outro nome.
— Não me chame de ignorante, porque eu não sou. Sou um homem bem informado.
— Existe uma diferença entre informação e…
— Você é meu filho e está parecendo um deles… onde eu errei?
O silêncio cabisbaixo não remete ao respeito, mas à dor da urgência. Gerações não herdam ferramentas de distinção. Esta, a distinção, é fruto da desconstrução sobre mitos e ditos.
— Ei, mano. Qui tá pegano?
— Sei lá… quero fazer algo que… que me deixe bem, entendeu?
— Não! Vambora? O rolê começô.
— Não vou. Quero fazer a minha música, entende?
— Não cara. Tá de onda?
— É a minha música, é tudo o que eu tenho.
— Irado, véi. Mas não agora. Os mano tá na praça. Tô chegano. Num fróxa, não!!
— Eu não quero, tô angustiado.
— Ah! Nem vem com conversa. Sabe que tão mangano com a gente, né? É só não dá moleza, mano. Os vermi não pega em nóis.
— O vírus. Eu preciso fazer a minha música.
— Tá ligado, meu? O homi disse que é um resfriadinho. Tá mole, irmão? Cê é fracoti agora?
— Eu preciso da minha música…valeu, mano!
“Temos a arte para não morrer ou enlouquecer […].” (NIETZSCHE, 2008). E a arte, tanto quanto a educação e a saúde, são processos de expressão e manutenção da vida, de saneamento mental, de produção de identidades coletivas, culturais. A arte tem poder diante das distopias, pois o abismo da segregação gerenciada pelo acúmulo de riqueza entre poucos não é ficção.
Cutucando Bukowski, a gente passa a vida toda no esforço de não sermos bestas, para agora não morrer como bobos. Que o autor perdoe a falta de jeito, mas a bobice tem posto o medo na ponta da lança: ignorância pega?
Referências:
BUKOWSKI, C. Miscelânea Septuagenária: Contos e Poemas. Trad. Pedro Gonzaga. Porto Alegre: L&PM, 2014.
SÓCRATES. Disponível em https://www1.folha.uol.com.br/livrariadafolha.
NIETZSCHE, F. Além do Bem e do Mal. Trad. Paulo de Souza. SP: Cia de Bolso, 2005.
NIETZSCHE, F. A vontade de poder. Trad. M. Fernandes e F. Moraes. RJ: Contraponto, 2008.
Imagem de destaque: Priscilla Paula