Sandro Vinicius Sales dos Santos
Muitas pessoas são lembradas pelo que foram ou pelo que acumularam em vida. Outras, entretanto, são lembradas por aquilo que significaram para seus semelhantes. Essa afirmação exprime, com eloquência, o pesar que a comunidade científica do campo educacional (e principalmente da área da educação infantil) está sentindo com a perda lastimável ocorrida na última semana. A educação brasileira perde Fúlvia Rosemberg, falecida na última sexta-feira, 12 de setembro, em decorrência de complicações causadas por um câncer.
Fúlvia Maria de Barros Mott Rosemberg era graduada em Psicologia, título obtido pela Universidade de São Paulo em 1965. Era também Doutora em Psicobiologia da Criança, pela Ecole Pratique des Hautes Etudes/Université de Paris realizado em 1969. Era professora titular de Psicologia Social da PUC/SP, onde coordenava o NEGRI (Núcleo de Estudos de gênero, raça e idade). Tinha ampla experiência na área de Psicologia, com ênfase em Psicologia Social e Estudos Sociais da Infância, e era considerada referência no Brasil nos estudos sobre ações afirmativas e educação infantil, além de pesquisadora sênior da Fundação Carlos Chagas.
Rosemberg também foi uma importante pesquisadora engajada tanto nos debates sobre questões de gênero e ações afirmativas quanto em educação infantil. Foi coordenadora do Programa Internacional de Bolsas de Pós-Graduação da Fundação Ford no Brasil. Durante várias décadas desenvolveu estudos, publicou artigos e promoveu inúmeros debates sobre a democratização da Educação, tendo como principais temas: construção social da infância, educação infantil, políticas educacionais e relações de gênero, raça e idade.
Feminista por vocação e opção, militou de modo veemente no que diz respeito à questão da mulher na sociedade brasileira, o que está expresso na vasta produção da autora sobre gênero e educação. Nos artigos por ela assinados em diversos periódicos do país, fica nítida a capacidade e o alcance analítico de Fúlvia investigadora, haja vista, as interseções realizadas pela pesquisadora em termos de articulação entre as categorias de análise: gênero, raça e idade para entender a complexidade do cenário educacional brasileiro.
No campo da infância e da educação infantil, a professora atuava intensamente desde meados da década de 1970 sempre em busca da qualidade no que diz respeito à educação e aos cuidados destinados às crianças menores de seis anos. Um bom exemplo de seu posicionamento político a favor de meninos e meninas é o depoimento concedido ao Senado sobre Projeto de Lei de alteração da LDB (PLS 414 e PLC 6755), depoimento esse realizado em 2010 representando o Movimento Interfóruns de Educação Infantil do Brasil (MIEIB) e a Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd). Na ocasião, Fúlvia chamou a atenção de todos/as para a necessidade e a urgência de uma revisão “consistente e reflexiva da LDB, particularmente no que diz respeito à educação infantil (creches e pré-escolas), em decorrência da Emenda Constitucional 59/09 (EC 59/09) que instituiu a obrigatoriedade da educação básica para crianças e jovens entre 4 e 17 anos de idade”. Nesse texto, a autora vai apontando as armadilhas linguísticas presentes na escrita do projeto de lei e suas implicações futuras para área da Educação Infantil e para as crianças de cinco anos de idade e suas respectivas famílias.
No que concerne às questões raciais, a professora rechaçou de modo enfático o entendimento simplista do termo “cotas” nos debates e discussões em torno das medidas tomadas em termos de políticas públicas que visavam a inserção de excluídos em diversas esferas da sociedade, como o Ensino Superior, por exemplo. Em respostas aos inúmeros questionamentos surgidos a partir desse debate, Rosemberg introduziu a expressão “ações afirmativas”, por entender que ela engloba um conjunto de mecanismos que fazem uma discriminação positiva, inclusive o das próprias cotas raciais.
Mulher, brasileira; professora, pesquisadora, militante, enfim, uma aguerrida defensora de minorias; intelectual forjada na esteira de uma tradição de pensadores que não se contentam em apenas compreender a realidade social brasileira, mas que, militam em prol das camadas populares, das minorias silenciadas. Fúlvia foi uma pesquisadora de extraordinária perspicácia e sagacidade que entra para o hall dos intelectuais engajados na militância em prol dos excluídos tais como, Anísio Teixeira, Florestan Fernandes e Paulo Freire. Uma mulher pioneira, brilhante e corajosa, Fúlvia Rosemberg deixa um imenso legado para as atuais e para as futuras gerações.
Para ler na íntegra o depoimento feito por Fúlvia ao Senado Federal sobre PLS 414 e PLC 6755, acesse este documento.