Foi no quintal que aprendi sobre ciência

Fabiana Damásio1

A primeira vez que vi a ciência de perto foi no quintal da casa de Tia Maria. Eu era pequena, tinha por volta de sete anos, e gostava mesmo de ficar zanzando pelas ruas de chão batido da minha cidade lá no recôncavo baiano. Era início do século XX e as casas das Tias, como carinhosamente eram chamadas pelo jeito acolhedor, juntas, formavam vilas de comunidade negra de ex-escravizados. 

O quintal era relativamente pequeno, mas suficientemente aconchegante para ouvir as histórias dos nossos ancestrais e também fazer da vida uma ciência que exigia atenção e ação no presente. Lá as crianças se encontravam para se deleitarem com as histórias contadas pelas Tias, que, com toda paciência e amorosidade, sabiam que as suas palavras eram mais preciosas do que quaisquer entretenimentos de crianças nas ruas bucólicas dos seus bairros. Pensando bem, o quintal da Tia Maria era bem grande, do tamanho da sua generosidade, vista pela sua constante disponibilidade de acolher quem batia à sua porta. No coração da baiana sempre tinha espaço para quem mais chegava.

No quintal, as vidas entravam em ebulição diante das histórias, comidas, atabaques e canções. Juntas, teciam uma energia coletiva de honradez àquilo que havia sido construído por quem havia chegado antes e teve suas vidas marcadas pela dominação dos seus corpos. Com a liberdade instituída, era preciso concretizar a liberdade genuína. Era necessário afirmar o direito de ser livre e viver em condições mais iguais na sociedade. Em cada encontro, era possível ver a ginga que o povo fazia para entender as crueldades de um mundo que insistia em fazer da sua história palavras ao vento. Resistiam bravamente, com leveza, fazendo da ginga o seu firmamento.

Mas não tinha só o quintal de Tia Maria. Tinha também o da Tia Dolores e de tantas outras Tias que naturalmente transformavam aquele espaço num canto generoso de saberes e experiências que faziam suas travessias pelas gerações. O chão dos quintais costumava ser de barro e convidava quem chegava a ficar descalço para pisar firme. Era como se o barro pudesse promover alguma conexão com um saber acumulado pelas famílias nas caixas dos seus corações. 

Era no quintal que se fazia a ciência de ser visível. Lá, ecoava o canto da comunidade, um canto em que muitas vozes entoavam um som vigoroso, robusto e que fazia o peito bater forte. Ali, a ciência se lapidava a cada história que era contada, a cada comida que era servida, a cada dor que era curada. A cura vinha da terra, da folha, das águas, das mãos e das palavras. Os modos de viver a vida faziam parte dos segredos que atravessavam gerações em que se escolhiam os momentos em que o que era possível ser dito e ensinado como ofício. 

Tia Maria gostava da roda e de rede, mas não era a rede para se deitar e descansar e pensar na vida. Não havia tempo para descansar diante de tanta luta que ela tinha pela frente. A rede era aquela que fazia seu canto ecoar, para fazer ciência, e, unida a tantas outras, descobria a cura das suas feridas e enxergava as atrocidades de uma cidade que legitimava mais o que o povo do norte trazia de novidade. 

Ao ver tantas mulheres em seus quintais contando histórias, só podia acreditar que a ciência não é um substantivo feminino à toa. Convoca quem a abraça para o exercício da sensibilidade e para contemplar o que há no entorno. Desperta a curiosidade, ultrapassa as fronteiras internas dos curiosos e curiosas de plantão e assim estruturam conhecimentos necessários para a existência e re-existência. E foi assim que me vi desde pequena aprendendo sobre ciência.

Aquelas mulheres fizeram da terra o seu caminho de construção de um conhecimento que era rapidamente acessado pelo amigo, pela vizinha e até mesmo autoridades que batiam à sua porta e se propunham a sentar no quintal e se beneficiarem daquela preciosa ciência. As Tias davam uma grande volta para falar de todos os elementos que tangenciam e faziam com que a ciência ganhasse o seu significado e se sentisse inscrita e caracterizada na sua essência.

Assim, segui presente no quintal, vendo ciência em toda parte. As ideias apareciam sentadas nas rodas, nos bancos, na comida servida ou penduradas nas árvores. Tinha ciência para colocar leite de coco na moqueca. Era ali que eu existia, que mergulhava na cultura da minha terra e reconhecia a minha ancestralidade. Assim, passei a compreender que fazer ciência está relacionado a afirmar a minha essência. A ciência conecta saberes, memórias, experiências. A ciência convida para a construção da unidade no desenho de evidências. É sobrevivência, memória coletiva, ação, coexistência. A ciência é resposta e também é pergunta. As Tias despertaram, em mim, a atenção ante os desconhecimentos que a vida apresenta e me ensinaram a ciência de ser, frente aos desafios, presença.

 

1Fabiana Damásio é psicóloga, servidora da Fundação Oswaldo Cruz- Fiocruz, e é a Diretora da Unidade da Fiocruz de Brasília.

Nota: A escrita deste conto foi inspirada na aula “Cultura no Pós-Abolição: a perspectiva das mulheres do samba”, ministrada por Angélica Ferrarez, docente integrante do curso “Entre Tambores e Procissões: festas e frestas da brasilidade”, organizado sob a curadoria de Luiz Antônio Simas.

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Este texto integra uma parceria entre o Pensar a Educação, Pensar o Brasil 1822/2022 e o Instituto René Rachou (Fiocruz) para promover ações e reflexões em torno da Educação para a Saúde.


Imagem de destaque: Flickr

 

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