A manhã abria os portões da escola, após quase dois anos de isolamento. Estudantes entravam esbarrando. Esbarrando-se. Normal. Ou quase. Dentre eles, um secundarista debutante regateava a obrigatoriedade do retorno. Negava-se a entrar, tentando voltar ao carro da mãe que, a contragosto, ainda o aguardava.
— Não admito, não! A pandemia não terminou. Eu me recuso a entrar…
— Por que você veio? Poderia ter ficado dormindo – disse o porteiro com seu também normal humor/modis.
— Eu vim por que não sou preguiçoso, viu? Levanto cedo.
— Mas ninguém tá obrigando você!
— Estão, sim! Se eu não vier, vocês cortam a minha matrícula!
— É… coisas do …do… não adianta ficá aí fora, né?
— Eu vou ficá aqui…bem aqui…e quero vê você me ignorá!
— Nem aí! vô fazê meu trabalho. Vô fechá o portão, né?
— Eu tenho direito de protestá… eu tenho…
O portão de ferro rodou sobre a base como que esmagando as consoantes bilabiais /p/, /b/. /Ppppppp/, /Bbbbbb/. Esmagadas por um bico de portão envelhecido. Tenso. Recalcitrante. A manhã empanava-se de ditos não ouvidos. Costume calçado em botas de cano alto.
— Fulano! Fulano! Não me faça passar mais vergonha! Vamos embora.
— Não é vergonha, mãe! É meu direito protestar…já disse!
— Para quem você puxou, meu filho? Pelamordedeuso! Vamos!
— Pode ir. Vou ficar aqui! Não saio daqui!
— Então, pelo menos entra! Entra, logo.
— Não! Se eu entrar, sou apenas mais um ali dentro. Só mais um…
— Aqui fora você é um só! Me ouve, por favor!
— Não! Já disse! Eu vou protestar contra essa…essa falta de coerência!
— Vou deixar você aqui! Eu vou…
— Obrigado, mãe! Já estou aqui e daqui só saio na hora certa.
— Que hora!? Que hora!?
— Da saída!
— Você não entrou na escola, filho! Vai sair…sair? por favor, raciocina!
— Mãe, confia em mim. Vai lá!
Desarmada pela conversa sem diálogo, a mãe arrancou o carro. Pneus sulcando o asfalto. A culpa brotando cheiros. Deixá-lo ali, sozinho? Com os nervos espargindo caranguejos, voltou para casa. O retorno à escola fora tão abrupto quanto tudo o mais que pintava o cenário nacional. Inominável. Muita coisa mudara desde o início do isolamento. Perdas. Inseguranças. Informações disparatadas. Adolescentes trabalhando. Pais sem trabalho. Cortes. Mortes. O escambau aportara no Brasil. Não havia blindagem para isso.
Enquanto a mãe se retorcia em cólicas emocionais, o filho mobilizava-se. Interpelava os passantes. A pé ou sobre rodas. Na rua e na calçada. Investia nos argumentos. Chamava à conversa.
— O senhor tem filhos? Estão na escola? O que acha dessa…
— A senhora tem filhos? Filhas? Qual a sua opinião sobre…
— Os senhores não pensam nos riscos?
— E a incoerência?
— A pandemia não terminou!
— O protocolo? Já visitou o espaço de uma sala de aula?
— Há riscos…o senhor não pensa nisso?
Desdobrava-se a manhã de três de novembro. Saliva no asfalto. Coleta de silêncios com rompantes do dizer nada. Nada a dizer. Olhos de vender bagaços. Tranças. Trançados. O estudante aboletou em algum lugar do cérebro as interlocuções. Queria discutir a ineficácia do protocolo sanitário para as escolas como a sua. Salas de espremer suor. Janelas poucas. Muitos estudantes na mesma sala. Acotovelados.
Estremecia dúvidas. Sentia a obviedade pipocar na pele. Derrames da inconsciência alheia. De outros. Da maioria. Erupção massiva de repetições: melhor que a escola retornasse 100%. Os adolescentes, como ele, estariam sob os cuidados da instituição. Deveria entrar e aprender alguma coisa. Melhor na escola do que em casa. Professor é professor. Pai é pai. Cada um na sua. A pandemia fora-se. Não sentia vergonha por estar do lado de fora da escola? Transgressor. Bagunceiro. Esquerdista de fraldas. Arruaceiro! Reacionário! Aprendiz de comunista! Militante mirim!
Sem filtros, o estudante do primeiro ano do ensino médio nivelou o palpável/paispáveis: pais abatidos por fogo amigo. Cansados. Assustados. Desligados. Anestesiados. Medos traduzidos em agressões. Nas engrenagens do dia, fazer o quê com a casa cheia? E o conteúdo? As atividades escolares provocavam guerras. Abismos. Traumas. Violências multívocas. Queriam os filhos na escola por vários motivos. Poucos motivos corroboravam a razão da escola. Culpabilizavam os educadores na mesma ordem em que os exigiam. Discursos desatualizados. Esvaziados. Sintomas da negação. Prognósticos sombrios.
— Mas você não disse que em tempos de negação a gente precisa resistir!?
— Disse! Sim! Com certeza!
— E que as narrativas são importantes para quebrar esses espaços!?
— Sim, disse!
— Então, por que não me ajuda a promover uma discussão?
— Sabe… é que… tô em estágio, entendeu?
— Não! Não entendi!
— Eu…eu não posso colocar o meu cargo em…
— Risco?
— Mais ou menos isso…
— Ô, profe! Você me fez acreditar que tinha jeito!
— E tem! Claro que tem!
— Mas como? Você fala e não age?
— Não…é que… não é bem assim!
— E é como? Como é?
— A gente fica preocupado, né?
— Fica! Mas você disse que precisávamos pensar, conversar.
— Então…
— Eu tô aqui desde cedo… ninguém quer conversar.
— Tá difícil, né!?
— Não, profe! Não tá difícil… só tamo atrasados.
Imagem de destaque: Estado do Paraná