Fogueiras de um destino

Ivane Laurete Perotti

A manhã abria os portões da escola, após quase dois anos de isolamento. Estudantes entravam esbarrando. Esbarrando-se. Normal. Ou quase. Dentre eles, um secundarista debutante regateava a obrigatoriedade do retorno. Negava-se a entrar, tentando voltar ao carro da mãe que, a contragosto, ainda o aguardava.

— Não admito, não! A pandemia não terminou. Eu me recuso a entrar…

— Por que você veio? Poderia ter ficado dormindo – disse o porteiro com seu também normal humor/modis.

— Eu vim por que não sou preguiçoso, viu? Levanto cedo.

— Mas ninguém obrigando você!

— Estão, sim! Se eu não vier, vocês cortam a minha matrícula!

— É… coisas do …do… não adianta ficá aí fora, né?

— Eu vou ficá aqui…bem aqui…e quero você me ignorá!

— Nem aí! vô fazê meu trabalho. Vô fechá o portão, né?

— Eu tenho direito de protestá… eu tenho…

O portão de ferro rodou sobre a base como que esmagando as consoantes bilabiais /p/, /b/. /Ppppppp/, /Bbbbbb/. Esmagadas por um bico de portão envelhecido. Tenso. Recalcitrante. A manhã empanava-se de ditos não ouvidos. Costume calçado em botas de cano alto.

— Fulano! Fulano! Não me faça passar mais vergonha! Vamos embora.

— Não é vergonha, mãe! É meu direito protestar…já disse!

— Para quem você puxou, meu filho? Pelamordedeuso! Vamos!

— Pode ir. Vou ficar aqui! Não saio daqui!

— Então, pelo menos entra! Entra, logo.

— Não! Se eu entrar, sou apenas mais um ali dentro. Só mais um

— Aqui fora você é um só! Me ouve, por favor!

— Não! Já disse! Eu vou protestar contra essa…essa falta de coerência!

— Vou deixar você aqui! Eu vou…

— Obrigado, mãe! Já estou aqui e daqui só saio na hora certa.

— Que hora!? Que hora!?

— Da saída!

— Você não entrou na escola, filho! Vai sair…sair? por favor, raciocina!

— Mãe, confia em mim. Vai lá!

Desarmada pela conversa sem diálogo, a mãe arrancou o carro. Pneus sulcando o asfalto. A culpa brotando cheiros. Deixá-lo ali, sozinho? Com os nervos espargindo caranguejos, voltou para casa. O retorno à escola fora tão abrupto quanto tudo o mais que pintava o cenário nacional. Inominável. Muita coisa mudara desde o início do isolamento. Perdas. Inseguranças. Informações disparatadas. Adolescentes trabalhando. Pais sem trabalho. Cortes. Mortes. O escambau aportara no Brasil. Não havia blindagem para isso. 

Enquanto a mãe se retorcia em cólicas emocionais, o filho mobilizava-se. Interpelava os passantes. A pé ou sobre rodas. Na rua e na calçada. Investia nos argumentos. Chamava à conversa. 

— O senhor tem filhos? Estão na escola? O que acha dessa…

— A senhora tem filhos? Filhas? Qual a sua opinião sobre…

— Os senhores não pensam nos riscos?

— E a incoerência? 

— A pandemia não terminou!

— O protocolo? Já visitou o espaço de uma sala de aula? 

— Há riscos…o senhor não pensa nisso?

Desdobrava-se a manhã de três de novembro.  Saliva no asfalto.  Coleta de silêncios com rompantes do dizer nada. Nada a dizer. Olhos de vender bagaços. Tranças. Trançados. O estudante aboletou em algum lugar do cérebro as interlocuções. Queria discutir a ineficácia do protocolo sanitário para as escolas como a sua. Salas de espremer suor. Janelas poucas. Muitos estudantes na mesma sala. Acotovelados. 

Estremecia dúvidas. Sentia a obviedade pipocar na pele. Derrames da inconsciência alheia. De outros. Da maioria. Erupção massiva de repetições:  melhor que a escola retornasse 100%. Os adolescentes, como ele, estariam sob os cuidados da instituição. Deveria entrar e aprender alguma coisa. Melhor na escola do que em casa. Professor é professor. Pai é pai. Cada um na sua. A pandemia fora-se. Não sentia vergonha por estar do lado de fora da escola? Transgressor. Bagunceiro. Esquerdista de fraldas. Arruaceiro! Reacionário! Aprendiz de comunista! Militante mirim!

Sem filtros, o estudante do primeiro ano do ensino médio nivelou o palpável/paispáveis: pais abatidos por fogo amigo. Cansados. Assustados.  Desligados. Anestesiados. Medos traduzidos em agressões. Nas engrenagens do dia, fazer o quê com a casa cheia? E o conteúdo? As atividades escolares provocavam guerras. Abismos. Traumas. Violências multívocas. Queriam os filhos na escola por vários motivos. Poucos motivos corroboravam a razão da escola. Culpabilizavam os educadores na mesma ordem em que os exigiam. Discursos desatualizados. Esvaziados. Sintomas da negação. Prognósticos sombrios.

— Mas você não disse que em tempos de negação a gente precisa resistir!?

— Disse! Sim! Com certeza!

— E que as narrativas são importantes para quebrar esses espaços!?

— Sim, disse!

— Então, por que não me ajuda a promover uma discussão?

— Sabe… é que… em estágio, entendeu?

— Não! Não entendi!

— Eu…eu não posso colocar o meu cargo em…

— Risco?

— Mais ou menos isso…

— Ô, profe! Você me fez acreditar que tinha jeito!

— E tem! Claro que tem!

— Mas como? Você fala e não age?

— Não…é que… não é bem assim!

— E é como? Como é?

— A gente fica preocupado, né?

— Fica! Mas você disse que precisávamos pensar, conversar.

— Então…

— Eu tô aqui desde cedo… ninguém quer conversar. 

— Tá difícil, né!?

— Não, profe! Não tá difícil… só tamo atrasados.


Imagem de destaque: Estado do Paraná

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