Evitar a telas não forma leitores

Giselly Lima de Moraes

Uma nova questão tem acendido o debate sobre a leitura na atualidade e gira em torno dos efeitos das telas sobre o cérebro e suas consequências para a formação do leitor. A questão entrou na pauta da mídia brasileira depois da publicação do livro O Cérebro no mundo Digital – Os desafios da leitura na nova era, da neurocientista Maryanne Wolf.

No livro, a autora defende que a leitura de textos impressos mobiliza partes específicas do cérebro e que envolvem a percepção visual e o correspondente valor sonoro das letras, como também a memória e a ativação de emoções que possibilitam gerar empatia entre o leitor e o mundo representado. Pelo fato de o cérebro ser plástico, esse processo deixa marcas, formando um caminho complexo, o qual a autora define como o circuito da leitura profunda. Segundo ela, enquanto a leitura no papel mobiliza o leitor a fundo, a leitura no meio digital não se dá nesses termos, já que ativa setores diferentes, mais parecidos com um passear dos olhos. O problema é que a exposição contínua à tela, sobretudo na primeira infância, pode traçar um caminho mais simplório no cérebro, que passa a ser mais solicitado do que o caminho da leitura profunda, que é mais exigente.

Apesar do alerta, a autora reconhece que negar a presença da tela na vida contemporânea é inócuo. Tampouco diz que é preciso retroceder no tempo e voltar a ler apenas no papel. Ela defende a promoção de um “duplo letramento”, ou seja, o ensino da leitura nos diferentes meios, digital e impresso, recomendando evitar as telas antes dos cincos anos e intensificar a leitura no papel.

Infelizmente, o debate público tem destacado apenas a parte da mudança no cérebro, o que logo se tornou uma afirmação apressada sobre os efeitos deletérios da tecnologia digital sobre a leitura, levando à ideia de que, para formar leitores, a tela é o inimigo a ser combatido. Essa afirmação, bastante apocalíptica, causa medo e não ajuda a enfrentar os novos desafios da leitura. 

Maldizer as telas não é solução alguma, pois, além da necessidade de diferenciar as distintas formas de interação no meio digital, é improvável que possamos reverter a presença dessa tecnologia na sociedade. Se existem pesquisas que apontam perdas na linguagem em crianças expostas à tela por muitas horas, especialmente do vocabulário, há outras que mostram as possibilidades de ampliação do número de palavras aprendidas por meio da leitura de livros digitais que favorecem a interação entre o adulto e a criança. E ainda é razoável pensar que a substituição das interações em que há trocas linguísticas significativas por qualquer atividade, digital ou não, em que a criança se mantém passiva e solitária durante horas traz prejuízos para o desenvolvimento da linguagem. 

A afirmação de que a leitura digital é danosa para a leitura profunda é desonesta. Primeiro porque a maior inimiga da leitura profunda é a falta de leitura. Segundo, porque o conceito de leitura profunda precisa ser discutido.

Wolf define leitura profunda como aquela concentrada, em que ouvimos a voz do texto (verbal) em nossa cabeça e nos entregamos a ela. Daí seu argumento de que a tela não possibilita tal experiência, ou seja, uma leitura contínua, linear etc., mas podemos mesmo dizer “profunda”? 

Para os estudos das teorias da leitura, leitura profunda é outra coisa, pois está associada a acessar as diferentes camadas de sentido de um texto. Esses estudos que, em geral, tratam da literatura e se baseiam na leitura do impresso nos dizem que há leitores que não vão muito além da superficialidade, lendo os aspectos mais evidentes e literais, ainda que possam seguir o fio narrativo de um texto longo. 

Assim, o simples fato de evitar as telas não garante que o cérebro esteja de antemão preparado para realizar a leitura profunda. Para isso é preciso o contato permanente com o ato de ler um trabalho educativo. Por outro lado, mesmo que um leitor das telas possa se dispersar mais por conta do caráter multimídia dos dispositivos, não significa que não seja capaz de fazer uma leitura aprofundada, interrogar o texto, comparar informações, dialogar sobre o lido e explorar suas diferentes camadas. 

É preciso considerar ainda que a leitura profunda do digital é um desafio novo, que pode ser superado a partir da aprendizagem das novas formas de ler na contemporaneidade. Portanto, em vez de simplesmente demonizarmos as telas, que tal pensarmos sobre como está o ensino da leitura em ambas as materialidades textuais, impressa e digital? 

É urgente que o debate avance para além do medo, começando pela leitura mais aprofundada do livro da própria Wolf que, no fim das contas, fala da necessidade de enfrentamento desses novos desafios a partir do campo educacional, especialmente no âmbito das discussões sobre os currículos e nas pesquisas empíricas sobre a leitura na cultura digital. Ou seja, o alerta é do campo das neurociências, mas o enfrentamento é no campo das ciências humanas e sociais, sobretudo, da educação.

 

Sobre a autora

Pesquisadora em Literatura Infantil Digital e formação do leitor literário e doutora em Educação pela Universidade Federal da Bahia. Tem mestrado em Educação pela UFBA, especialização em Literatura Brasileira e licenciatura em Pedagogia. Atualmente é professora adjunta do Departamento de Educação da Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia, docente e pesquisadora do Programa de Pós-graduação em Educação da UFBA e está realizando pós-doutorado em mediação de literatura infantil e juvenil digital na Universidade Autônoma de Barcelona. É membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação e Linguagem (GELING), coordenadora do projeto permanente de extensão Narrativas Literárias, Multimodalidade e Mediações (NAMME) e membro fundador do Coletivo Leitura na Tela.

Para saber mais

KOVAK, Miha; VAN DER WEEL, Adriaan (org.)  Lectura en Papel vs. Lectura en Pantalla. Bogotá: Cerlalc, 2020.

WOLF, Maryanne. O Cérebro no mundo Digital – Os desafios da leitura na nova era. São Paulo: Contexto, 2018.


Imagem de destaque: Galeria de Imagens

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