Costuma-se dizer que, para um autor, pior do que repetir os outros, é repetir a si mesmo. Ai de mim! Que, neste trabalho, nada mais faço do que repetir-me. (Anísio Teixeira, 1958). (1)
Há alguns anos divido com Elaine Teixeira Pereira a editoria da coluna Entrememórias, parte do jornal Pensar a Educação em Pauta. Como o nome indica, a memória é o mote em torno do qual os escritos enviados a esta coluna devem versar. Contudo, este espaço de memória foi gradualmente reservado à escola. Esta instituição, sempre polêmica, emerge das recordações de quem a frequentou, mesmo que por um único dia!
Na semana passada, lendo o conjunto de textos enviados pelas alunas da professora Marilandês Mól Ribeiro de Melo(2), para definir datas e outras questões relacionadas à publicação dos mesmos na Coluna, a reflexão sobre as memórias escolares e de vida, narradas com muita delicadeza, adquiriu um contorno inesperado. As notícias e debates sobre a aprovação do projeto de lei que autoriza o homeschooling, no Brasil, pela Câmara dos Deputados, permaneciam ali, fingindo-se de mortos, em meus pensamentos, mal sabia eu. E foram despertados, abruptamente, de seu fingimento, à medida que lia aquelas narrativas e as reflexões que elas me traziam sobre inúmeras questões relacionadas à escola e à educação, entre outras tantas. Uma sensação estranha, de pesar talvez, por quem terá em suas memórias uma lacuna que nunca será preenchida: a ausência da escola, ou de pelo menos, parte dela.
Na perspectiva da história oral – e aqui considero que a palavra escrita também já foi verbo –, o registro da história de vida de indivíduos, ao focalizar suas memórias pessoais, constrói também uma visão mais concreta da dinâmica de funcionamento da trajetória do grupo social ao qual pertence, fortalece identidades e atua como um mecanismo de reparação social. Os temas sociais aparecem, assim, subjacentes às narrativas pessoais, desvelando ao leitor atento as dificuldades de acesso à educação de parcela significativa da população brasileira. Neste percurso, que é ao mesmo tempo individual e coletivo, as recordações da escola remetem às dificuldades de aprendizagem, às recordações – nem sempre positivas – de professoras e professores, às amizades construídas que muitas vezes carregamos conosco pela vida afora, seja na recordação ou na convivência diária… Também nos recordamos dos bullyings; da diversidade de pessoas, crenças e pensamentos; das represálias; das diferentes formas de avaliação; da estrutura física de pátios, quadras, salas…. Cada pequena lembrança, que somada à outra e outra, tece um panorama dos diferentes tempos da escola e da educação no Brasil. E falo, aqui, da educação pública.
E ainda mergulhada nas lembranças meio adormecidas, me recordei de um texto de Anísio Teixeira, resultado da conferência por ele pronunciada em setembro de 1956, no Primeiro Congresso Estadual de Educação Primária, na cidade de Ribeirão Preto, estado de São Paulo, parte do livro Educação não é privilégio, publicado em 1957, pela Cia. Editora Nacional. Nos dois anos em que atuei como professora de História da Educação, no curso de Pedagogia da FaE/UEMG, recorri ao escrito do autor, sem receio de incorrer em anacronismos, pois este são passíveis de serem analisados e avaliados no transcorrer dos debates em sala de aula, para retomar a contenda infindável, que nos ronda incessantemente, sobre A escola pública, universal e gratuita. Sempre ameaçada, merece que as memórias daqueles e daquelas que por ela almejaram, sejam “remexidas” no intuito de conhecermos as permanências, os retrocessos e os avanços que a nossa República, cada dia mais distante do sonho sonhado, impingiu – e impingi – à educação de seu povo, diante de políticas educacionais que nitidamente segregam, elitizam e hierarquizam saberes, que apartam jovens do acesso ao ensino superior, direcionando-os, prematuramente, a um mercado de trabalho extremamente precarizado.
Preocupo-me, como historiadora e cidadã, que tantos anos depois o discurso de Anísio Teixeira permaneça atual ao defender a escola pública como espaço de aproximação social e destruição de preconceitos, de formação democrática e para a democracia e de construção de uma igualdade social via educação. Iniciar este texto com a sua queixa, lá de 1858, não foi fortuita. Ai de nós, que nos formamos e atuamos nas escolas públicas. Até quando teremos que nos repetir? Pobre de ti, nação desmemoriada…
Sobre a autora
Doutora em História pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Pós-doutora em Educação pela FaE/UFMG e em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Pós-doutoranda no Instituto René Rachou – Fiocruz/MG.
Notas
(1) Apresentação da tese Educação é um Direito destinada ao concurso jamais realizado para a cátedra de Administração Escolar e Educação Comparada da Faculdade Nacional de Filosofia, da Universidade do Brasil, 1958.
(2) Professora no Programa de Pós-Graduação em Educação do Instituto Federal Catarinense (PPGE/IFC); Coordenadora do Curso de Licenciatura em Pedagogia e Professora dos Cursos de Licenciatura em Pedagogia e Matemática da mesma instituição.
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