Em 2018 eu viajei pela primeira e única vez para outro país. Tenho uma conexão com o Uruguai por conta das leituras repetidas que fazia de um livro pequeno chamado O Livro dos Abraços, de Eduardo Galeano, que é nativo da terra da Celeste. Lia o autor e fazia associações emocionantes com o seu país. Como se todos daquela sociedade fossem como Galeano. Tolice. Não que o país seja feio ou sem graça. Pelo contrário. É mágico! Cada coração se enamora pelo que lhe convém, não é mesmo? Foi assim comigo: guiado pela companheira e pela irmã, perambulamos entre o congresso acadêmico e as ruas cheias. Uma semana acadêmica e turística recheada de muitos olhares galeanicos.
Andei muito, literalmente. Gosto de andar quando viajo. Uso o mínimo possível o transporte público ou carro. Gosto de ver tudo. Olhar tudo. Saber tudo. E pelas andanças na capital encontrei várias feiras de rua. Gosto de feiras. Dessas que a gente vê na TV que o povo vende de tudo! Humanos de todos os tipos e tempos e seus objetos a negócio. Tenho apreço especial por aqueles que vendem parte de seus pertences nestas feiras. É um ato de coragem se desfazer dos objetos caseiros, impregnados do passado familiar. Sinto respeito pelos vendedores e pela parte da memória afetiva que dispõe a circular. Claro, tenho consciência da necessidade que motivou o ato de colocar à venda.
Não é que se venda a memória. O que estava naquelas ruas antigas e ensolaradas eram as necessidades de manter a dignidade do lar, da alimentação e da família ou fazer um troco para algo que lhes era particular. Tem como não se interessar por essas feiras? Que lembrança seria melhor levar daquela cidade do que a troca de bens entre desconhecidos? Que numa tarde única em suas vidas se falaram por alguns poucos minutos e trocaram objetos de suas residências por algo a consumir novamente. Foi o que pensei para justificar minha situação de consumista tolo frente à multidão de objetos antigos e distintos que eu nunca havia visto.
Pois bem, comprei quatro xícaras de porcelana de dois senhores. Cada uma de um canto do mundo. Achei muito chique aquele ato! Houve negociação e contação de causos em portunhol, nem sempre entendível. As xícaras eram parte de jogos que não estavam mais completos pelas idas e vindas às feiras. Parte da memória daquelas famílias e que não estaria à venda nas lojas de artesanato. Foi o que entendi. Questionei-me se ao comprá-las estaria me intrometendo na cultura alheia. Estaria possuindo algo que não deveria me pertencer?
Comprei-as, dentre os vários objetos que ali estavam dispostos sobre panos simples estendidos ao chão. Um dos senhores disse que me vendeu por eu ter ido direto a elas em meio aos diversos objetos e que faria um bom uso das xícaras. Papo de vendedor? Talvez. Já o outro senhor, no segundo momento, queria que eu aproveitasse e levasse o resto de seus objetos, que eram uma leiteira e um prato, ambos de porcelana, para fazer companhia às xícaras. Disse que só iria embora depois de vender tudo. Perguntei então se ele fazia isso há muito tempo. Ele respondeu, enquanto fumava seu cigarro de filtro, que sempre que era necessário se desfazia de algo que não lhe era mais útil em sua casa. Senti-me mais leve em levar. Era a justificativa que eu precisava para apaziguar meu ímpeto consumista.
Infelizmente não pude levar tudo. Apenas quatro xícaras. Pensei: quantas vezes compramos por comprar? Neste caso eu comprava parte dos objetos que carregavam emoções, sentimentos, sorrisos, prazeres de um bom café. Memórias de uma vida ou de mais naquele país. Argumentei isso internamente para dar sentido ao simples fato de que achei aqueles objetos pequenos lindos e faziam parte da minha interpretação da feira. Precisava ter a feira comigo. Levá-la para casa. Levar o Uruguai ao Brasil. Precisava delas para dar sentido material aos sentimentos uruguaios.
Fui embora me questionando por que não temos feiras deste tipo onde eu vivia. Será que conseguimos vivenciar aquela situação de levar artefatos caseiros e negociá-los com tanta frequência? Será que olhamos para o nosso passado, nossos artefatos históricos com certo desdém a ponto de não vê-los como objetos aptos ao negócio e de certo valor? Ou o inverso: valorizamos tanto tais objetos e situações que as encerramos em museus e antiquários ao ponto de que a vivência junto deles seja obtida por poucos?
A minha alegria em obter as xícaras fazia parte de um deslumbramento em estar naquela situação de turista, de viajante que quer levar algo de valor para dar materialidade às experiências vividas naquele país. Estaria eu apossando da memória material daqueles sujeitos ou foi legítima a ação que nós estabelecemos na negociação financeira?
Vi pelo menos três feiras em uma semana. Fiquei sabendo que elas ocorrem todos os dias em cada canto da cidade. Ou algo assim. Talvez minha memória esteja romantizando o que vi e ouvi. Fato é que nestas feiras encontra-se de tudo à venda. E em cada uma delas as memórias estão circulando nas ruas. Sinto o cheiro dos churros que comi no domingo daquela semana até hoje! Lembro também da necessidade imperante em negociar tudo. As feiras são memorabilias1!
Não vi problema em comprar os objetos pois estava ressignificando aquelas xícaras. De suportes do líquido, de parte da história de duas famílias uruguaias para a minha memória pessoal daquela semana uruguaia. Ou essas xícaras seriam parte de outras histórias. Teriam aqueles senhores as comprado naquelas feiras em anos anteriores? Tudo o que disseram era verdade ou apenas uma construção da minha viagem ideal?
Levava comigo, no retorno ao Brasil, um pouco das histórias dos senhores uruguaios e idosos por meio daqueles objetos. As xícaras vieram embaladas em papel jornal, uruguaio, e, depois de apresentadas à minha família, que não tinha nenhuma daquele tipo em casa, foram novamente embaladas e guardadas por três anos. Nunca usei. Nunca usamos e estavam até ontem embaladas. Pela luz da vida (ou seria da memória?), elas finalmente ganharam um lugar no cotidiano da minha casa. De destaque. Agora na construção de outras memórias, das minhas, nossas, no Brasil. Puro sentimento de posse? Talvez. Deslumbre burguês? Possivelmente. A memória está ali, na estante e estará à vista, amanhã. Objeto de decoração que faz do hoje um pouco do ontem e que nos permite viajar sem sair de casa em tempos de privação da circulação física. Nossa casa nos diz quem fomos e o que podemos ser, assim como as feiras uruguaias informam que a necessidade é o imperativo da vida.
Para saber mais:
1Memorabilia é o conjunto de objetos e coisas guardados ou colecionados por estarem relacionados com pessoa, acontecimento ou época importantes e por trazerem à tona memórias e lembranças.
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