Fabiana Vilas Boas
Estamos testemunhando um momento histórico onde censuras perversas disfarçadas de democracias viáveis se entranham nas nossas relações sociais e profissionais. E assim vamos, dia-a-dia, perdendo direitos, espaços e conquistas. Vamos sendo silenciados e pausados pelo cansaço e muitas vezes desânimo de discutir o óbvio ululante (1). Pouco a pouco distorções bizarras vão desqualificando e destruindo histórias de lutas sociais pelos direitos humanos e construção de um estado democrático de direito. Discursos esvaziados de fundamentação e contextualização histórica, inflamados de palavras de ordem em nome de “Deus, da ordem e da família” culminam em nomeações, destituições, processos administrativos, perseguições e decisões em todas as instâncias instituídas e que ferem drasticamente preceitos básicos da Constituição Federal, essencialmente o prescrito no caput do seu quinto artigo (2).
Poderia aqui discorrer sobre vários exemplos desse momento dramático que vivemos, nas esferas micro e macro, inclusive trazendo testemunhos pessoais, contudo vou colocar foco na notícia que nos impactou nos últimos dias. Em dezoito de maio a Câmara dos Deputados aprovou o texto-base de um projeto de lei que regulamenta a prática da educação básica domiciliar, também conhecido como homeschooling, que permite que pais eduquem os filhos em casa, desde que cumpram as recomendações exigidas e informem o Ministério da Educação. Esse projeto faz parte de uma pauta de costumes defendida pelo presidente Jair Bolsonaro desde o início do seu mandato e retomada agora com bastante ênfase pelos seus apoiadores mais conservadores e deve seguir para tentativa de aprovação no Senado. Essa prática existe em outros países como Estados Unidos, e é aplicada para minorias em caráter de exceção. No Brasil é proibida porque implica abandono intelectual do discente, entendendo o acesso ao Ensino escolar como direito básico e fundamental da criança e do adolescente para o seu integral desenvolvimento cognitivo, social e emocional.
De acordo com o projeto, o homeschooling poderia ser adotado com as seguintes condições: Pelo menos um dos pais ou um preceptor, ou seja, a pessoa indicada para educar, apresente diploma de ensino superior ou educação tecnológica; se os pais ou tutores não tiverem condenações por crimes hediondos, contra crianças e adolescentes ou casos de violência doméstica; se as crianças estiverem registradas em escolas que ofereçam a modalidade de educação domiciliar; se os estudantes se submeterem a avaliações anuais; se o aluno for reprovado duas vezes nessas provas, os pais não poderão mais optar pelo sistema.
Reitero que atualmente, o ensino domiciliar não é permitido no país por decisão do Supremo Tribunal Federal (STF). Os ministros na ocasião dessa decisão, argumentaram que, conforme a Constituição, o dever de educar implica cooperação entre Estado e família, sem exclusividade dos pais. Países que são muitos fortes na área da Educação como Alemanha, Holanda e Coreia do Sul, rejeitam veemente esse movimento e defendem sistemas educacionais organizados institucionalmente.
Mário Sérgio Cortella em entrevista recente sobre o assunto, destacou “A questão central, quando se pensa em ensino domiciliar, é que ele deveria ser a alternativa última na impossibilidade de frequência à escola. Como acontece com pessoas que participam de famílias circenses, ou de famílias ciganas, em que a legislação garante que ela possa ser educada com a comunidade familiar, dado que há uma mobilidade contínua e isso prejudicaria a frequência à escola. Se a gente supusesse que a escola serve só para aprender um conteúdo, se diria ‘bom, então a educação em casa pode ajudar muito’, mas uma das partes da educação escolar é o aprendizado de conteúdos. No conjunto, ela é uma experiência de convivência, de possibilidades e de colocar-se junto a outras pessoas (…)”
A pauta priorizada por esse projeto de lei configura um absurdo retrocesso e distorção na discussão sobre Educação no Brasil. É importante destacar alguns aspectos muito relevantes ligados aos direitos humanos que salienta o caráter perverso desse movimento, que desconsidera as desigualdades existentes nas condições sociais de acesso à educação e direitos básicos preconizados pelo ECA. Um deles é o fato de que a escola atua como um espaço fundamental de rede de proteção social contra violências diversas muitas vezes vivenciadas dentro de casa pela criança e adolescente.
Outro aspecto relevante a ser considerado é o conjunto de habilidades envolvidas na fundamentação legal e política para construção do sistema educacional brasileiro, a premissa continua sendo a oferta de educação regular, formal, integral, pública, democrática e de qualidade para todos. A habilidade cognitiva, que envolve a transmissão de um conhecimento curricular e desenvolvimento intelectual básico até a formação profissional é uma das habilidades desenvolvidas no ambiente escolar, contudo existem várias outras fundamentais e também preconizadas para esse acesso, como a habilidade social e emocional.
O desenvolvimento das habilidades sócio emocionais no ambiente escolar é demandado pelo processo educacional desde os primórdios. Vivências e aprendizagens sobre heterogeneidade, diferenças, antagonismo, protagonismo, autonomia, liberdade, coletividade são matéria prima da escola e a família precisa inexoravelmente dessa parceria para promover o desenvolvimento integral dos seus filhos. Como a escola também demanda essencialmente da família para o desenvolvimento da sociedade. Essa deve ser uma relação complementar e de total reciprocidade.
Portanto, discursos que defendem projetos como esse, como também o famigerado “Escola sem partido” que caberia outra dissertação, se disfarçam das melhores intenções para despolitizar e roubar do sujeito aquilo que lhe é mais caro e essencial, a consciência dos seus direitos e exercício das suas liberdades. Tudo fechado para a manutenção ad aeternum do poder financeiro e político nas mãos das minorias elitistas e conservadoras. Banir Paulo Freire e construções político pedagógicas democráticas do ambiente escolar é só uma das estratégias para esse plano em que está bem claro que os fins justificam os meios.
“Se a Educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela, tampouco, a sociedade muda” Paulo Freire.
Sobre a autora
Mestre em História pela UFMG. Professora da rede municipal de Betim com ampla experiência em formação de educadores.
Notas
(1) O termo ululante se popularizou através do escritor brasileiro Nelson Rodrigues, que escreveu o livro “O Óbvio Ululante”, em 1950. A expressão “óbvio ululante” é usada para algo excessivamente óbvio e que dispensa explicações devido a sua clareza.
(2) “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes”.
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