Educar para o dissenso

Igor Mendonça Cardoso Gomes

É lugar-comum, no contexto político atual, a crítica ao que se convencionou chamar de “polarização.” Uma breve consulta aos dicionários torna fácil ver que o vocábulo é tomado de empréstimo das Ciências da Natureza. O significado físico-químico do substantivo, que é o de estabelecimento de uma diferença de potencial elétrico entre dois pólos, passando um deles a ser positivo e o outro, negativo, dá lugar a um sentido figurado, até mais comum na atualidade. Nos debates políticos correntes, “polarização” tem o sentido de “fixar-se ou centrar-se em posições ou pólos opostos”, sendo um verbete para o qual o Dicionário Saraiva Jovem (ed. Saraiva, 2011) dá um exemplo bastante adequado: “A classe polarizou-se diante da possibilidade da criação de uma lei que torne um jovem de dezesseis anos responsável por seus atos, podendo assim, ser condenado por crimes que cometer: uma parte ficou a favor da lei e a outra posicionou-se contra.”.

Em geral, a crítica à “polarização” é dirigida a seus efeitos nefastos: levar à mesa de jantar certos assuntos pode conduzir a brigas de família e à impossibilidade de uma ceia natalina; expressar certas posições no trabalho pode ser um obstáculo à promoção, ou até razão oculta para uma demissão imotivada; registrar uma opinião nas redes sociais pode levar à pena de “cancelamento.”

Tudo isso porque alguém, algum dia, “inventou” uma dicotomia “nós/eles” que já havia sido superada pelo Zeitgeist pós-político. “Esquerda e direita”, “conservadores e progressistas” era algo que já não havia. Éramos todos seres pós-políticos; indivíduos em busca de melhorias materiais em uma sociedade globalizada a caminho da prosperidade e da paz perpétua.

O pensamento pós-político, no entanto, se esqueceu do (ou tentou encobrir o) caráter constitutivo da diferença na identidade. Como defendem vários estudiosos, o “eles” aparece, na verdade, como uma “exterioridade constitutiva” do “nós” (AMOSSY, 2017, p. 35). Também Maingueneau (2008, p. 21), desde o campo linguístico, defende o “caráter constitutivo da relação interdiscursiva”, que faz a “interpretação semântica entre os discursos parecer um processo de tradução, de ‘interincompreensão regulada.’ Cada um introduz o Outro em seu fechamento, traduzindo seus enunciados nas categorias do Mesmo e, assim, sua relação com esse Outro se dá sempre sob a forma do ‘simulacro’ que dele constrói.” É oportuno enfatizar: admitirmos que, mesmo em certa medida, o campo do interdiscurso é o da “interincompreensão regulada” e nos mostra que existem espaços em que o consenso racional simplesmente não é possível, uma vez que partimos de princípios diferentes.

Nessa mesma linha, Chantal Mouffe (2015, p. 02) faz uma crítica aberta à supremacia do consenso. De acordo com a politóloga, “imaginar o objetivo da política democrática em termos de consenso e reconciliação não é somente um equívoco conceitual, mas também algo que envolve inúmeros riscos políticos. O anseio por um mundo no qual a dicotomia nós/eles estaria superada está baseado em falsas premissas, e aqueles que compartilham essa visão certamente não compreendem a verdadeira tarefa que a política democrática tem diante de si.” Para ela, a abordagem consensual, em lugar de criar condições para a reconciliação da sociedade, conduz ao surgimento de antagonismos que uma perspectiva agonística poderia evitar, fornecendo aos conflitos “inerradicáveis” uma força legítima de expressão. O papel da democracia, defende a autora, não é dissolver os antagonismos, mas construir o “eles” de maneira que não seja percebido como inimigo a ser destruído, mas como um adversário: alguém a quem atribuímos o direito de defender suas ideias. Nesse contexto, o ‘adversário’ é um inimigo legítimo, com quem temos algo em comum, porque aderimos todos aos princípios ético-políticos da democracia liberal: liberdade e igualdade, embora discordemos radicalmente sobre a forma como devemos implementá-las.

Se as críticas relatadas forem procedentes, o educador tem um grande desafio. Além de educar para o consenso, fomentando no educando a vontade de conhecer e manejar as ferramentas fornecidas pela Lógica Informal na argumentação prática, é também necessário educar para o dissenso, fazendo-se compreender que a esfera pública é constituída por uma multiplicidade de “polarizações” em constante mutação, muitas das quais insuprimíveis pelo diálogo racional. Educar para a democracia, portanto, não é somente educar para o consenso, mas sobretudo educar para o dissenso. Nessa realidade, a criação de instâncias reguladas para a canalização dos desacordos, reabilitando a polêmica como modo de gestão de conflitos, parece um caminho interessante e promissor.

 

Para saber mais
AMOSSY, Ruth. Apologia da Polêmica. São Paulo: Contexto, 2017.

MAINGUENEAU, Dominique. Gênese dos Discursos. São Paulo, Parábola Editorial, 2008.

MOUFFE, Chantal. Sobre o Político. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2015.


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