Educar para a democracia: pela memória, contra golpes e celebrações

Alexandre Fernandez Vaz

Não fosse o Brasil o que é, não fôssemos nós o que somos, seria uma surpresa que o dia de hoje passasse em branco, ou quase em branco, embora faça anos um golpe de Estado que inaugurou a noite que, depois de quase seis décadas, teima em não deixar amanhecer. O aniversário é comemorado com vivas diversos e gritos contra o perigo vermelho, o tal fantasma comunista que não existia há 59 anos, tampouco agora. Que nem mesmo os governos progressistas puderam transformar a data em um dia de rememoração de tanto sofrimento e morte por mais de mais de duas décadas, ao contrário do que acontece na Argentina e no Uruguai, em relação aos dias que inauguraram seus recentes períodos ditatoriais, não deixa de chamar a atenção. É frustrante ver o Brasil não seguir o que seus vizinhos têm de melhor.

Este é um país com muita dificuldade em lidar com o próprio passado, um pretérito, digamos, muito imperfeito. Em 31 de março de 1964 (ou em 1º de abril, dia da mentira, segundo se conta, já que a coisa teria acontecido depois da meia-noite), generais apoiados pelo grande capital, grupos conservadores e Estados Unidos da América decretaram que o país estava em estado de anarquia e que eles e seus asseclas, em defesa da Pátria, fariam o processo de regeneração nacional. Para tanto, depuseram um presidente que governava constitucionalmente – mesmo que houvesse sido fosse o caso, havia mecanismos políticos e jurídicos para que fosse contestado e mesmo impedido de seguir no Planalto.

Chamada de revolução por muitos de seus partidários – e por movimento pelos que se pretendem neutros, como se isso fosse possível, e por quem considera que não houve ditadura, mas apenas exceção à regra –, o golpe instaurou um regime de terror que durou formalmente até a segunda metade dos anos 1980, mas cujos efeitos não param de ser sentidos. Que um entusiasta dessa tramoia, Jair Messias Bolsonaro, tenha sido eleito há quatro anos, quase alcançando novo mandato, há poucos meses, dá a temperatura da amnésia ou, pior, do apoio ou indiferença à ditadura.

Há certo escárnio nas comemorações do 31 de março, como se fosse um dia de libertação ou coisa que o valha. Só mesmo em um país que cultiva a fantasia de que as Forças Armadas são o depositário fiel da liberdade é possível a comemoração de um golpe perpetrado por elas. Esse sentimento em relação aos militares é produto da publicidade que eles mesmo sempre se encarregaram de fazer, posando de baluartes da moralidade e do patriotismo. Quanto aos civis, eles aprenderam na escola, pela imprensa e com os veículos de entretenimento, que a farda garante autoridade e superioridade. Aprenderam, ademais, a temê-la. É provável que venha dessa sedimentação o fato de que pouco ou nada problematizamos a existência da Polícia Militar. A anuência em relação à força auxiliar do Exército em permanente ação nas cidades é a admissão de que vivemos em guerra, que há um inimigo interno a ser combatido. Uma sociedade nos limites da democracia que supomos conhecer (e que nunca foi alcançada) precisa de poder coercitivo, mas isso não significa que ele deva ser militar – força que, por natureza, deveria se dedicar a proteger a nação, não a perseguir seus cidadãos, especialmente os mais vulneráveis. Estes são reféns do tráfico e das milícias, assim como igualmente da PM. A quem interessa esse estado de coisas?

Volto ao dia de hoje, que precisa se tornar, a exemplo dos países vizinhos, um dia da memória, de pausar o calendário para que se possa recordar o horror, de forma a não o deixar prosseguir. Os militares – esses funcionários públicos com armas na mão – poderiam mostrar seu compromisso com a democracia exercendo a autocrítica e deixando de ter tanto medo da Comissão da Verdade, mas tal ato está longe de acontecer, infelizmente. Mantêm-se eles, em correspondência a isso, como casta, banhados de privilégios e refratários a qualquer diálogo que, por exemplo, coloque e jogo os currículos de suas escolas de formação. Como, em uma democracia, pode sobreviver um poder tão autocrático?

Na antessala da própria morte, em 1940, Walter Benjamin escreveu que “Só terá o dom de atiçar no passado a centelha da esperança aquele historiador que tiver apreendido isto: nem os mortos estarão seguros se o inimigo vencer. E esse inimigo nunca deixou de vencer”. A lição não poderia ser mais clara, ontem e hoje. Passou da hora de o inimigo ser enfrentado, ou seja, de o país haver-se com sua própria história.

 

Para saber mais
BENJAMIN, Walter. O anjo da história. Belo Horizonte: Autêntica, 2012. 264 p. (Tradução de João Barrento).

MURAT, Lúcia. Que bom te ver viva. 1989 (documentário: https://www.youtube.com/watch?v=zqpybT37k9A)

VICTOR, Fábio. Poder camuflado:  os militares e a política: do fim da ditadura à aliança com Bolsonaro. São Paulo: Companhia das Letras, 2022. 416 p.


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