Educação para a democracia: memória e compromisso ético-político

Alexandre Fernandez Vaz

Em 1965, o filósofo Theodor W. Adorno proferiu uma conferência radiofônica, que no ano seguinte foi publicada em um pequeno livro que reunia ensaios seus – pensados como modelos críticos -, chamada Educação após Auschwitz. Tratava-se ali de pensar um lugar para a educação depois dos acontecimentos que culminaram na construção “racional” dos campos de concentração e extermínio. Compõe essa violência inaudita uma mentalidade, preconceituosa na base, e especialmente nociva em suas consequências: a indiferença e o ódio ao outro não apenas autorizados, mas incentivados pela estrutura política e social e pelas figuras de identificação oferecidas pelo rádio, cinema, jornal, pelos discursos sentimentalistas e autoritários das lideranças políticas. A mobilização dos afetos de parte da população alemã foi fundamental para que o nacional-socialismo triunfasse. Tal propósito, erigido em torno de uma fantasia mitológica organicista, bradava por um mundo purificado, livre de diferenças que pudessem fazer lembrar a própria incompletude. Por isso judeus, ciganos, deficientes e outros grupos vistos como párias precisavam ser exterminados. A força de tal ideário não foi pequena, angariando simpatias mundo afora, inclusive nos Estados Unidos da América e no Brasil.

A Adorno parecia evidente que o espírito nazista seguia vigente vinte anos depois do fim da Segunda Guerra, de maneira que seria importante investir as melhores forças em uma educação que, tendo como desiderato a construção da democracia, procurasse, em cada sujeito, o desenvolvimento da autorreflexão crítica. Isso seria urgente, já que a história, como se lê em sua Dialética negativa (1966), impusera um novo imperativo categórico: que a barbárie não se repetisse. É por isso que logo no início da famosa conferência de 1965 lemos que “A exigência de que Auschwitz não se repita é primordial em educação. Ela precede tanto a qualquer outra, que acredito não deva nem precise justificá-la. Não consigo entender por que se tem tratado tão pouco disso até hoje. Justificá-la teria algo de monstruoso ante a monstruosidade do que ocorreu”. Para o grande dialético, não é lícito, portanto, justificar a resistência à barbárie, tal a evidência do compromisso ético-político de toda educação frente a ela. Se não é assim, é porque o horror, como violenta compulsão, não cessa de se repetir.

Auschwitz é um ponto álgido da organização racional do sofrimento e, como tal, é irrepetível. No entanto, é também índice de um processo perene, que se coloca lado a lado – e aqui não vai nenhum motivo de comparação – com, por exemplo, o colonialismo. Se a história do Ocidente tem no sangue e no sofrimento um motor de muitos cavalos de força, não é diferente a forma como esse processo se impõe nas Américas, particularmente no que hoje conhecemos como Brasil. O colonialismo, com seus correspondentes genocídio indígena e escravização de africanos e de afro-brasileiros, permanece em nós e sua mentalidade se espalha, encontrando destino em todo tipo de minoria política, de povo eleito, como escreveu Adorno: eleito para ser exterminado.

Essa história que normaliza a violência entre nós permanece, entre outros motivos, porque nos falta a elaboração desse passado que, sem ser sepultado, permanece como ferida infectada. A cada tanto tempo, parece que tudo ganha uma espessura ainda maior, como na longa noite que começa em 1964 e que até hoje não viu a luz do dia. Enquanto for repetido, sem mais, que houve alguns excessos por parte do Estado, nada mais, durante a ditadura mais recente, e cada um não assumir sua responsabilidade histórica perante o acontecido, não teremos trégua. É esse o solo fértil em que brota a inaceitável evocação à “liberdade” de conspirar contra a democracia, o que inclui manifestações segunda as quais o mais importante é que os investimentos internacionais e os negócios em geral estariam garantidos – e, portanto, o progresso do país também – se um golpe fosse perpetrado e com ele se consolidasse um governo ditatorial.

No Brasil, às condições socialmente degradadas alia-se a deterioração das subjetividades, para a qual concorrem aqueles mesmos meios empregados pelo nazismo – jornal, rádio e cinema, que resistiram ao anacronismo -, mas atualizados na forma das plataformas virtuais, aplicativos de mensagens e redes sociais. As figuras identitárias, as de ontem e as de hoje, não deixam de ser semelhantes: o pequeno grande homem que se diz perseguido pelas elites, o religioso histriônico propondo a guerra espiritual, o astro do podcast que “fala a língua do povo”, e por aí vai. Resta-nos pensar, como Adorno há quase seis décadas, o papel da educação frente a isso.

Ilha de Santa Catarina, agosto de 2022.

Para saber mais
ADORNO, Theodor W. Palavras e sinais: modelos críticos. Petrópolis: Vozes, 1995. (Tradução de Maria Helena Ruschel).

ROTH, Philip. Complô contra a América. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. (Tradução de Paulo Henriques Britto).


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