Quando um General vem a público, com a maior desfaçatez, e afirma que em certas circunstâncias caberia ao Exército dar um golpe para proteger a democracia brasileira, precisamos discutir sobre a Ditadura no Brasil. Quando autoridades públicas, políticos, jornalistas e parte da população vem a público bradar que os direitos humanos são ideologia e que seus defensores devem ter a mesma sorte dos “bandidos que defendem”, ou seja, a morte, precisamos discutir sobre a Ditadura no Brasil. Quando um ex-Presidente é condenado sem provas e a ele é imposto um processo de julgamento reconhecidamente inconstitucional, é preciso que discutamos o legado autoritário deixado pela Ditadura e que ainda hoje marca nossas instituições judiciárias.
Não se trata, obviamente, de imaginar que o autoritarismo, a violência e, mesmo, o fascismo presentes no Brasil, hoje, tenha se originado na Ditadura. Eles são, como já se disse aqui, muito mais antigos e estão profundamente imbricados com a nossa história. Trata-se, isso, sim, de reconhecer e apontar o dedo para um momento de nossa história recente – o tempo da Ditadura – em que o Estado brasileiro se transformou numa instituição antidemocrática e investiu contra as mentes e os corpos dos próprios cidadãos que deveria proteger.
Recordar, para não esquecer e para elaborar, é um elemento fundamental para que o Estado não seja “legalmente” organizado para o crime. Por isso, é preciso dizer que não é por acaso que chegamos a esse momento terrível que estamos vivendo em que o Estado brasileiro dá claras mostras de abandono dos ideais democráticos e das garantias mínimas à proteção dos Direitos Humanos. Em que o assassinato de lideranças políticas populares é tratado como fato corriqueiro pelas forças de segurança, em que parte da população defende abertamente a “volta dos militares”. Em que, mais uma vez, o combate à corrupção é justificativa para a suspensão das garantias constitucionais. Nada disso é por acaso: há os interesses, as vozes, os investimentos dos mesmos sujeitos e instituições que, em 1964, impuseram a Ditadura no Brasil, a qual, apesar de comandada pelos Militares, teve forte apoio e participação civil.
Mas não são apenas estes aspectos que a Ditadura nos deveria fazer recordar. Também devemos recordar que foi nos momentos mais cruéis do regime que vozes e mais vozes de diversas partes do país e dos meios políticos e sociais os mais diversos, se levantaram para denunciar os crimes cometidos pelo Estado e resistir coletivamente aos mesmos. Foi, também, o momento em que, de forma organizada e potente, se estabeleceu que os Direitos Humanos eram uma pauta, uma reivindicação e um horizonte que deveríamos perseguir e conquistar.
Derrotada a Ditadura, não foram poucos os momentos em que os ideais democráticos e os direitos humanos foram postos no frontispício de nossos planos de educação e nos programas e currículos escolares. Foram elaboradas propostas muito generosas a respeito desses temas e grande expectativa se criou sobre o poder de a escola pública contribuir para a construção da normalidade democrática e para o respeito aos Direitos Humanos. E realmente muito foi feito nessa direção. Mas, certamente não foi o suficiente.
Há uma dimensão educativa nas relações sociais, no movimento da história, que ultrapassa a escola e nos impregna de conhecimentos, valores e sensibilidades. A essa educação ninguém escapa e dela resultam tanto as nossas faces mais generosas quanto aquelas mais horrorosas e profundamente autoritárias. São estas últimas que parecem se impor nos últimos anos no Brasil. Mas certamente esta cara do Brasil não nos representa a todos. Ao longo de nossa histórica, cultivamos também tradição de luta e de elaboração de belos ideais.
Hoje, certamente, somos convocados a dar continuidade a essa luta e a esse ideário. Os tempos são novamente sombrios e os agentes do obscurantismo, da violência e da barbárie ganharam força e saíram às ruas. É por isso mesmo que não podemos recuar. Dizer da necessidade da democracia como fundamento da ação política, lutar contra a violência, contra o fascismo e defender a centralidade dos direitos humanos numa sociedade minimamente civilizada é o que nos cabe, inexoravelmente, inclusive para estarmos à altura daquelas(es) muitas(os) que nos antecederam.