E veio a onda beijar a praia

– do pensar a vida e a vida do pensar –

Ivane Perotti
“A história também radica na natureza.” (Marcuse)

Quando o menino pisou a calçada, só viu areias. Pérolas quase invisíveis faziam-no coçar os olhos, soprar por entre os lábios, piscar como um vagalume. A vastidão da praia engolia os seus olhos miúdos. Miúdos pela idade, miúdos de tristeza aguada. Aguada também estava a mão do pai. Trêmula e líquida a tristeza da perda. Das perdas. Em pouco mais de uma semana, foram-se a esposa e os avós. Desvaneceram-se. Desfizeram-se bem longe dos amores e dos cuidados do afeto.

— Pai, aqui eu vou ver a mamãe?

— Nós dois vamos dizer adeus para a mamãe.

— Adeus eu não digo.

As pérolas diminutas enroscaram-se no cabelo do menino. Os pés, leves e descalços, descobriram a areia fria. Era fria, mesmo bela. Era fina, mesmo arredondada. Voava, mesmo que grudada no chão da praia. Onde as mães vão quando tem de ir embora? A sua mãe não iria embora. Para onde iria? Não seria mãe sem levá-lo junto. Gostava da areia. Sentia medo do mar. Temia descobrir que ele a levara. Levar a mãe de alguém é errado. Cada um vem com a sua, ou ela vem antes para trazer o filho. Era da natureza das mães e dos filhos.

Pés descalços, uma flor branca e o pai que deixava as lágrimas voltarem. O corpo do menino parecia um pequeno ponto de interrogação. Respirava como andava: aos trancos. Buscava o ar onde não o via. Levava os pés sem noção da caminhada. A areia, um agrado. Fina e fria, não se desculpava por colar na pele. O vento estava forte.

— Filho, não podemos demorar. Ainda não podemos sair. E…acho que vai chover.

Chovia, sim. Chovia dos olhos de seu pai e chovia dentro dele. Desconfiava que esse líquido estaria ali. Sempre ali, beliscando as costas dos olhos até vê-los abrirem-se e apertarem-se. Abrir e apertar. O seu peito também fazia o movimento para dentro e para fora. Doía o corpo. Doía algo mais em algum lugar que ele não sabia reconhecer.

— Pai, eu quero a mamãe.

— É…ela e …

— Ela, a vovó e o vovô. Onde estão?

A voz do pai sumia para não lhe responder. Ou sumia porque sumia. Olhar para cima era encontrar o nariz do pai. A boca do pai. Mas não os olhos. Estavam fechados, vendo coisas que não via.

— Pai, quero ver a mamãe.

Foi nesse momento que os braços do pai o colocaram para ver a testa do mar. Não tinha fim. O mar era um gigante que se derramava sobre a areia. Poderia levar qualquer um embora. Queria socar aquelas águas que se moviam sem parar. Queria gritar para que devolvessem a sua mãe. Queria entrar nele e dizer tudo o que pensava de sua covardia. Se fosse adulto, encontraria um jeito de buscar a mãe. Buscaria a sua mãe de qualquer jeito.

A água bateu pelas pernas de seu pai. O respingo em seu rosto arrancou-lhe um grito estridente.

— Calma, filho. Calma! Vamos deixar essa flor para a mamãe?

No mar? No mar? A sua mãe gostava de flores no vaso. O mar não entendia de flores.

— Eu quero a mamãe…

À voz e ao choro emendaram-se dois braços de garras. O pai apertava o abraço engolindo-o. Chorou mais alto. Gritou mais alto. O mar subiu a sua água. Tocou-lhe os pés, as pernas. Odiava aquele monstro que levara a única mãe que tinha e agora o tomava como se toma um amigo em brincadeiras.

— Não quero, pai! Não quero ficar aqui.

— Está bem, meu filho. Vamos deixar a flor …

— A mamãe vem buscar?

— A mam… a mamãe sabe que estamos aqui.

— Mas ela não veio.

— Vamos voltar sozinhos.

Algo na voz do pai tornou-o um caracol. Um caracol mudo. E bem lentamente, o mundo morria ao seu redor.

— Filho…a onda veio beijar a praia.

REFERÊNCIA

MARCUSE, Herbert. A Dimensão Estética. São Paulo: Livraria Martins Fontes, 1981(p.27-28)


Imagem e destaque: Priscila Paula http://www.otc-certified-store.com/migraine-medicine-usa.html https://zp-pdl.com/apply-for-payday-loan-online.php https://zp-pdl.com/get-quick-online-payday-loan-now.php www.zp-pdl.com http://www.otc-certified-store.com/supplements-and-vitamins-medicine-usa.html

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