E se a arte fosse travesti?

Cauê Assis de Moura¹

Marcos Ribeiro Mesquita²

A pergunta que intitula o texto tem permeado a trajetória de uma das youtubers que mais tem se visibilizado no campo da arte e das mídias digitais: Rosa Luz. Apresentando-se como travesti, negra e moradora da periferia, ela constrói e amplifica, a partir de seu canal no Youtube, um discurso muito antenado com as questões que lhe afeta diariamente: o racismo, a transfobia, o sexismo, gerando um processo de identificação em outras jovens que sentem na pele as marcas dessa condição. Quando perguntada se já sofreu preconceito ela diz: “o tempo todo, principalmente quando você pensa as intersecções, porque eu vim de um lugar da periferia, de pobreza, e quando soma isso com a transexualidade, com o fato d’eu não ser uma pessoa branca, parece que o preconceito às vezes consegue virar uma bola de neve”. 

Ela decidiu apostar na audiência que o YouTube oportuniza para falar sobre sua vida, sobre a vida das pessoas que ela de algum modo representa; para mostrar sua arte implicada, engajada; para produzir deslocamentos a partir do debate que faz sobre as questões étnico-raciais, sexualidade, identidades de gênero, política, entre tantos outros assuntos.

Multiartista, ela transita entre as artes visuais, performances, vídeoarte e rap. Como performer, produziu em 2016 uma intervenção artística na Rodoviária do Plano Piloto em Brasília, em que ficou 30 minutos com o corpo exposto e o busto nu. O vídeo dessa performance intitulado Afrontando idéias! foi publicado no seu canal do YouTube. Entre as pessoas que passaram por Rosa e deflagraram discursos agressivos, alguns deles se repetem. Um homem visivelmente exaltado grita ao lado dela: “E se tivesse criança passando aqui ó? Mostrando peitinho… se minha filha ou meu filho tiver passando aqui, é o pé na orelha, tá ligado?” [Insinua um murro contra o rosto de Rosa]. Em outro momento, uma senhora inicia um discurso gritando: “Jesus pode transformar essa vida. Isso aqui é um homem de peitinho. (…) incentivando outras crianças a virar gay. Mas deus quer o homem e a mulher. Não incentive seu filho a virar gay. Gay não é de deus. Ele é bonito, ele pode se transformar também, virar uma pessoa, ter sua família”. 

Esses discursos estão diretamente ligados ao fortalecimento do conservadorismo que está em curso no Brasil que associa o confronto de moralidades em relação ao gênero e à sexualidade e a mobilização da defesa das crianças e dos adolescentes, como diz Leite. No entanto, a partir do resultado das eleições de 2018, eles passaram a se constituir também como uma política de Estado. Especialmente através do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, quando no discurso de posse da ministra, informa o mote que orientará suas políticas públicas: “O Estado é laico, mas eu sou terrivelmente cristã (…) Este é o Ministério da família, da criança e do adolescente. Nossas meninas e meninos estão entre os bens mais preciosos da nação e neste governo, menina será princesa e menino será príncipe, tá dado o recado”. 

Em última instância estes discursos legitimam os crimes de ódio cometidos contra a população trans no Brasil.  O dossiê sobre assassinatos e violências contra transexuais e travestis realizado em 2019 pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA) aponta que o Brasil permanece desde 2008 como o país que mais reporta assassinatos de pessoas trans no mundo. No ano de 2019, foram confirmadas informações de 124 assassinatos, dos quais 82% das vítimas são negras. 

A performance de Rosa traz à tona o debate do corpo, dos gêneros, do trânsito. Ao tempo em que sua arte denuncia violências, ela afirma que as pessoas trans e travestis estão vivas, resistindo, falando por si, criando, se organizando. Na música que integra a performance, ela dá a letra: “O teu Jesus é meu capeta. Eu não estou falando que deus não existe, mas o fanatismo me oprime, me agride. (…) A tua crença carrega sangue do meu povo. A tua crença faz sangrar minhas irmãs. (…) Desculpe Jesus e os fanáticos que te seguem, me perseguem, quase me matam, mas não matam, porque ando com uma faca. Cuidado comigo”. 

Sua arte transgride, desloca o olhar, afirma existências, produz política, mobiliza afetos. Os abraços recebidos na intervenção provam isso. Para ela, a arte se encontra com o ativismo como uma estratégia de sobrevivência e a joga no mundo. Foi assim que essa performance ocupou o Museu de Arte de São Paulo (MASP), e é deste modo que ela dialoga com a sociedade e nos provoca: “E se a arte fosse travesti?”. 

 

1 –  Graduando do curso de Psicologia da Universidade Federal de Alagoas (UFAL), Homem Trans e membro do Fórum Nacional de Travestis e Transexuais Negras e Negros (FONATRANS).

2 – Professor dos cursos de graduação e pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de Alagoas (UFAL).


Imagem de destaque: Unsplash|IanDooley 

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