O combate às opressões de gênero e a visibilidade do feminismo estão entre os temas mais debatidos com entusiamo em sala de aula. Principalmente entre as meninas, alunas transgênero e travestis, cujas experiências com o universo simbólico feminino possibilitam maior sensibilidade ao tema. As redes sociais foram determinantes para que o debate em torno do tema ganhasse notoriedade em diversos segmentos da sociedade.
Entretanto, o excesso de discussões sobre o tema ainda carece de muitas discussões. A principal dúvida suscitada pelos(as) alunos(as) em sala buscam compreender a origem do sexismo e do patriarcado como sistema de opressão-dominação.
Diante da complexidade da temática em questão, o uso do audiovisual em sala demonstra-se um primoroso recurso didático. Entre os filmes sobre a temática destaca-se a coprodução ítalo-francesa “A fonte das mulheres” (2011) do cineasta romeno Radu Mihaileanu. O filme retrata o cotidiano de um vilarejo no Norte da África em uma região árida em que as mulheres são responsáveis pelo trabalho doméstico. Entre elas, a árdua tarefa de buscar água em uma fonte distante, já que a vila não detinha de abastecimento de água. Após inúmeras tentativas fracassadas de reivindicação em prol construção de uma fonte, as mulheres do vilarejo resolvem fazer uma greve de sexo como forma de protesto e resistência.
A obra nos permite refletir sobre diversas situações cotianas em que mulheres são subjugadas e privadas de direitos. Entre tais questões, o acesso à educação é central na trama. A protagonista da história é a jovem Leila. Casada com o professor da vila, Leila é alfabetizada por seu marido durante a noite para que o ato não levantasse suspeita. Ao estabelecer contato com a leitura, a protagonista passa a questionar uma série de imposições culturais perpetuadas e reproduzidas pelos indivíduos em nome da religião.
Fazendo um paralelo com a ciências sociais, a obra remete-se muito à perspectiva do habitus, difundida pelo sociólogo Pierre Bourdieu (1930-2002) como sistema de disposição duráveis em que os indivíduos não apenas internalizam as normas da estrutura social como também as reproduzem tanto consciente como inconscientemente (2009).
O filme aborda a forma com que o discurso de inferiorização da mulher na cultura islâmica está relacionado ao um mecanismo de poder que possibilitou um sistema durável de opressão baseado em uma leitura equivocada das escrituras sagradas como forma de manutenção de privilégios masculinos. Desse modo, a educação ganha notoriedade uma vez que se torna um efetivo mecanismo de combate às opressões.
Outra perspectiva interessante da trama é o processo de discussão entre as próprias mulheres da vila, já que a estratégia de protesto utilizada não foi inicialmente aceita por todas as mulheres. Nesse sentido, as mulheres da vila exercem a noção de agente social, que compreende o indivíduo como ser social que é capaz de transpor as fissuras da estrutura social, mesmo que essas, por sua rigidez, demonstram-se intransponíveis.
A trama é repleta de diálogos que nos permitem fazer uma reflexão sobra a própria construção ocidental etnocêntrica acerca da condição de opressão e inferiorização da mulher no mundo árabe, pois faz uma crítica cuidadosa não à religião islâmica, mas a forma com que o discurso religioso tornou-se um um efetivo dispositivo de manutenção de privilégios pautados na restrição de direitos das mulheres. Somada a estas questões, é possível ainda estabelecer um paralelo à própria condição feminina na sociedade brasileira, repleta de exemplos cotidianos de machismo e privação de direitos tanto na esférica pública como na doméstica.
Diante de um levante reacionário que envolve a educação brasileira, como o projeto “Escola sem partido” – em que parte do seu texto destina-se à não “doutrinação de gênero, ao entender que discussões sobre tais questões devem restringir-se à esfera familiar” – somada ao sucateamento político das escolas públicas, associadas ao aumento nos casos de violência de gênero no país, discutir as relações de gênero como um dos marcadores da desigualdade torna-se fundamental para que de fato alcancemos uma escola inclusiva, capaz de proporcionar autonomia aos indivíduos.
*Mestre em Ciências Sociais -UNESP/Marília. Professora de Sociologia rede pública e particular do estado de São Paulo.
e-mail: samara carvalho_mesc@hotmail.com