De protestos e monumentos

Wojciech Andrzej Kulesza

A América assistiu perplexa, após a queda do muro de Berlim em 1989, a derrocada da União Soviética e do chamado “socialismo real” na Europa. Impressionou-se com a fúria da população que investiu contra seus antigos líderes, pondo abaixo os monumentos edificados em sua homenagem. Nada mais emblemático do que o espetáculo da derrubada da estátua de Lenin e sua posterior desintegração em inúmeros pedaços levados pelos manifestantes para casa como troféus.

Hoje, a América assiste, em seu próprio território, a cenas semelhantes, agora contra figuras históricas muito mais antigas, agentes do colonialismo e da escravidão. O ataque ao monumento de Cristóvão Colombo na Colômbia, no mês passado, revela o significado profundo desse protesto, ao afrontar quem inspirou o nome de seu próprio país. Como dizem os estadunidenses, nada de pessoal, mesmo porque, se estivessem na presença do intrépido navegador genovês talvez não tivessem ousado sequer levantar a voz.

Esses episódios nos mostram como os monumentos são cristalizações das relações de poder feitas para lembrar sempre ao povo quem é que está (ou estava) mandando. Quando as transformações sociais modificam essas relações, provocam reviravoltas que podem jogar no lixo da história quem outrora se gabava de escrevê-la. Conscientes desse movimento, os detentores do poder recolhem rapidamente esses monumentos, que passam agora a ser considerados patrimônio cultural sob tutela de historiadores.

Mortos, sem estarem enterrados, essas figuras são revividas quando é necessário que as antigas relações de poder sejam lembradas para mostrar ao povo o que acontece com quem desafia o poder, como acontece nas procissões religiosas nas quais as imagens dos mártires são retiradas de seus nichos nos templos para desfilarem pelas ruas. Isso não impede que essa simbologia ressuscite, em manifestações de resistência, gravada em camisetas e outros objetos de uso cotidiano. Marielle presente!

Essa dialética entre memória e esquecimento se reproduz toda vez que algo que incomoda o poder precisa ser eliminado. Uma carta destruída pelo seu potencial de comprometimento. Uma pessoa assassinada por temor de seu testemunho. Uma queima de arquivo, pois a função de recordar do monumento pode se materializar em qualquer objeto que nos diga alguma coisa dos tempos passados. Quanto mais palavras escritas, ainda que tenham apenas um pedaço de papel como suporte.

Como resquício do tempo em que as autoridades gravavam suas leis em pedras no caminho entre as cidades e que se manteve durante o uso de documentos oficiais manuscritos para o ensino da leitura e escrita, o documento conserva um caráter pedagógico. Ele ensina alguma coisa não somente para nós, mas também para a posteridade. Todo documento comporta um texto, tal como nosso grande monumento que é a Constituição de 1988. Não por acaso, os atuais editores de texto usam .doc como extensão dos arquivos de texto.

Investir contra um monumento, rasgar um panfleto, pichar um cartaz, apagar uma inscrição, ficar em silêncio num interrogatório, são manifestações da mesma violência: a de suprimir uma realidade indesejável ou insuportável. Nem que seja momentânea ou parcialmente. O comportamento individual, ao reconhecer-se coletivamente, multiplica sua intensidade, gerando um grau de violência cada vez maior. É essa violência que vira notícia, atrai para si os olhares e engrossa as multidões. Fora Bolsonaro!

Não nos iludamos, em todos esses casos é sempre a manifestação da mesma violência. Como diz o poeta, “do rio que tudo arrasta se diz que é violento. Mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem”. Por isso batalha em vão quem quer suprimir a violência, sem violência. Nos resta apenas, como no caso dos rios, tentar regular os fluxos de modo a pacificar as águas, torná-las mansas. Viverá assim em paz o rio e quem habita suas margens.

Há poderes, no entanto, que não admitem sequer o culto dos heróis, negam sua existência, reprimem seus seguidores, não querem sua presença de jeito nenhum e fazem tudo para que permaneçam incógnitos. Têm medo de que apareçam e desmistifiquem suas artimanhas, suas mentiras, seus planos criminosos. Atribuem-lhes qualidades misteriosas, feitiços, bruxarias, o diabo! Essa violência é intolerável, inaceitável, pois, mais cedo ou mais tarde, afetará gravemente a todos.

É nessas horas que as pessoas se valem do calendário, das datas comemorativas, rememoram-se os feitos dos heróis, as obras dos ídolos, as façanhas dos guerreiros, os momentos significativos de suas vidas. Tudo aquilo que fizeram deles o que eles representam para nós. E é justamente durante essas efemérides que se forjam documentos nos quais se revive a problemática do seu tempo, discute-se o contexto de produção de suas obras, aprende-se com o passado. Viva o centenário de nascimento de Paulo Freire!


Imagem de destaque: Tony Webster

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *