De Bacurau (2019) à Medida Provisória (2022): o lutar e o educar como possibilidade de emancipação e libertação em outros Brasis 

Rafael Henrique de Resende Marciano

Com Paulo Reglus Neves Freire (2019a), o patrono da educação brasileira, aprendemos que está equivocada a educação que não reconhece um papel altamente formador em uma justa raiva que se opõe às injustiças, às deslealdades, aos desamores e às explorações. Em Bacurau (2019) e em Medida Provisória (2022), ambas aclamadas obras cinematográficas contemporâneas, tal ideal pode ser percebido por meio das lutas e resistências desencadeadas nos diferentes Brasis e nas múltiplas narrativas retratadas.

As reflexões serão expostas à luz de mínimas especificidades dos filmes, pois não há a intenção de prejudicar as experiências audiovisuais e, sim, provocar o desejo de querer acessá-las. No longa-metragem situado no oeste do nordeste brasileiro, especificamente na região nomeada em homenagem a um pássaro noturno, somos apresentados à misteriosa população de Bacurau. Há duas instituições que se destacam na cidade, sendo elas: o Museu Histórico de Bacurau e a Escola Municipal Prof. João Carpinteiro (Ensino Infantil e Fundamental). Enquanto o primeiro, orgulhosamente, guarda o registro histórico dessa população descendente do Cangaço, isto é, o passado que não pode ser esquecido; a instituição escolar renova as esperanças do povo, ou seja, o futuro sendo construído como uma possibilidade de transformação social.

Entretanto, durante a trama escrita e dirigida por Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, sobretudo quando o perigo emerge no enredo, o presente constitui-se como uma amálgama dessa relação temporal, provocando na cidade o ímpeto necessário para sobreviver diante das adversidades impostas por forasteiros. As crianças, jovens, adultos e idosos – independentemente da violência existente, pois essa nos permite outros debates que não pretendendo adentrar – demonstram que há um diálogo entre o que eles foram e o que ainda são ao exercerem, coletivamente, a justa raiva contra às injustiças que cerceiam o direito à vida.

Já no longa-metragem dirigido por Lázaro Ramos e fruto da adaptação da obra teatral “Namíbia, Não!” de Aldri Anunciação, somos apresentados a um Brasil distópico em que o Congresso Nacional, com o intuito de suspostamente reparar os erros escravocratas, aprova a medida provisória nº 1888, que obriga a população fenotipicamente vista como negra a retornar para o continente africano, visando assegurar uma correção ao erro cometido pela colonização portuguesa por meio desta devolução às origens.

Tal imposição governamental, evidentemente com caráter eugenista, cerceia diversos direitos sociais fundamentais assegurados pela Constituição Federal, principalmente, o direito à liberdade dessa determinada população. Como alternativa, alguns negros trancam-se dentro de suas casas, sendo resguardados pelo artigo 150 do Código Penal, que assegura a inviolabilidade do domicílio; todavia, tal normativa, sem surpresas, não foi respeitada nas favelas do país.

Além dessa estratégia, para perpetuação da existência em solo brasileiro e para exercer resistência, ocorre a formação de diversos esconderijos provisórios para a população negra chamados de afrobunkers, sendo essa uma organização de vida sociopolítica-econômica similar às comunidades quilombolas do período da escravidão. Evidencia-se que a proposta não era esconder-se eternamente e, sim, sobreviver para depois reagir já que, segundo frase exposta na trama, “Em uma cultura de morte, viver é desobediência civil” (Murilo Araújo).

Ao mesmo tempo que planejavam formas de contra-atacar o caos que pairava no exterior do afrobunker, os moradores ainda realizavam suas confraternizações e celebravam suas existências. Destaca-se como um dos momentos mais belos da obra uma cena em que Berto, personagem interpretado pelo rapper Emicida, observa um jovem manusear uma arma e, em sequência, retira o armamento da mão dele e lhe entrega um exemplar do livro “Entre o mundo e eu” do jornalista estadunidense Ta-Nehisi Coates.

Ademais, Bacurau (2019) e Medida Provisória (2022) à luz da perspectiva freiriana (FREIRE, 2019b), nos inquietam com contextos em que os personagens são perseguidos, silenciados e assassinados. Essas conjunturas assemelham-se às situações-limites que se apresentam, em um primeiro momento, “[…] como se fossem determinantes históricas, esmagadoras, em face as quais não lhes cabe outra alternativa, senão adaptar-se”. Porém, com enredos que advogam pela organização da coletividade, ambas as obras causam anseios diante dos conflitos e, em especial, na possibilidade de superação deles por meio dos inéditos que podem ser viáveis.

Em síntese, a luta dos personagens por humanização conduz brilhantemente as narrativas, já que, ao se encontrarem negados do direito primordial de dizerem as próprias palavras e serem realmente escutados, eles nada mais fazem do que criar alternativas, cada um em seu determinado contexto, para inibir que tal assalto desumanizante continuasse a se perpetuar (FREIRE, 2019b).

 

Sobre o autor
Licenciando em Pedagogia com Formação Complementar em Educação de Jovens e Adultos, residente no Núcleo da Educação de Jovens e Adultos pelo Programa Residência Pedagógica da CAPES e integrante do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Educação Especial e Direito Escolar da Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: rafaelhmarc@gmail.com

Para saber mais
BACURAU. Direção: Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles. Produção: Emilie Lesclaux, Saïd Bem Saïd e Michel Merkt. Recife: SBS Productions; Cinemascópio, 2019.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários a prática educativa. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra [60ª ed.], 2019a.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. São Paulo: Paz e Terra [70ª ed.], 2019b.

MEDIDA PROVISÓRIA. Direção: Lázaro Ramos. Produção: Mariza Figueiredo. Brasil: Globo Filmes; Melanina Acentuada Interactions, 2022.


Imagem de destaque: Pixabay

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