Das margens, brota o novo: as lutas do Povo Kaxixó pelo direito à memória, à vida e à educação

José Heleno Ferreira

O direito à memória e à identidade cultural estão estreitamente vinculados à luta dos povos e comunidades tradicionais pela sobrevivência e pelo respeito às suas histórias. São também pilares importantes das lutas pelo direito à terra. Por isso, faz-se necessário compreender a relação entre patrimônio cultural e direitos humanos e o papel da educação formal e informal na garantia desses direitos.

O artigo 216 da Constituição Federal de 1988 define que “constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira”. Da mesma forma, a Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial da UNESCO, de 2003, estabelece o vínculo entre memória, identidade e patrimônio cultural. Tais documentos dialogam com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, que em seu artigo XXVII estabelece que “todo ser humano tem o direito de participar livremente da vida cultural da comunidade, de fruir das artes e de participar do progresso científico e de seus benefícios”.

No entanto, a defesa do direito à memória e ao reconhecimento de seu patrimônio cultural encontra barreiras numa sociedade que vincula os povos tradicionais ao atraso, ao não saber e nega os conhecimentos historicamente produzidos pelas comunidades ribeirinhas, pelos quilombolas, pelos indígenas e tantos outros. Quando as relações humanas são regidas pelo princípio do lucro e do acúmulo de bens materiais, os povos tradicionais são vistos como empecilhos ao progresso e ao avanço tecnológico e científico. Mas os sucessivos crimes e desastres ambientais, a crescente desigualdade social, o agravamento dos problemas de saúde (da qual a crise sanitária, política e econômica causada pela pandemia de COVID-19 é mais uma das evidências) têm mostrado a importância de reconhecer e dialogar com os povos tradicionais em busca de outros paradigmas para a vida humana.

E, neste sentido, as alternativas para um novo amanhã vêm da sabedoria e da resistência dos povos que estão à margem do capital, seja nos espaços urbanos, seja nos espaços rurais. É das favelas, dos quilombos, das aldeias indígenas, dos povos da floresta que surgem os prenúncios de um mundo novo, de uma nova terra onde “os povos todos irmanados, com sua cultura e direitos respeitados, farão da vida um bonito amanhecer com igualdade do direito de viver”, como nos diz a canção de Paulo Roberto que embalou os sonhos e os trabalhos das Comunidades Eclesiais de Base e das pastorais sociais nas décadas de 1980 e 1990.

Entre as várias histórias que entrelaçam a luta pelo direito à memória e o direito à vida está a trajetória do Povo Kaxixó, originário da região Centro-Oeste de Minas Gerais e que vive atualmente na aldeia do Capão do Zezinho, às margens do rio Pará, no distrito de Ibitira, município de Martinho Campos – MG. Durante muitos anos foram obrigados a negar a própria identidade como forma de se defender da violência daqueles que invadiram suas terras. Apenas nos anos finais do século XX, sob a liderança do Cacique Djalma, esse povo se reorganiza e busca, na reconstrução de sua própria história, forças para resistir à aculturação imposta durante séculos, rompendo, assim, com o “segredo encapado” – uma referência à identidade Kaxixó no longo período em que assumi-la significava risco à vida. O reconhecimento da etnicidade Kaxixó foi conquistado em 2003 e a demarcação de suas terras segue na justiça, enfrentando os diversos recursos interpostos pelos fazendeiros da região.

As lutas pelos direitos desse povo entrelaçam aspectos da educação informal – na valorização e reconhecimento do patrimônio cultural material e imaterial – e educação formal, na construção de um currículo intercultural para a Escola Estadual Indígena Caxixó Taoca Sérgia.

O Memorial Cacique Djalma, construído na casa em que ele morou os últimos anos de sua vida, o antigo Cruzeiro, o trabalho de reconstrução da própria língua, a Pedra Encantada são referências culturais que fortalecem o Povo Kaxixó na batalha incessante pelo reconhecimento de seus direitos à terra e à própria história. As festas populares, como o Festival do Pequi, realizado anualmente, e a festa de São Pedro são momentos de encontro da comunidade que contribuem para a manutenção dos vínculos entre todos os membros da etnia Kaxixó.

Por outro lado, a educação para o uso do território, para a preservação ambiental e para (re)conhecimento e valorização do cerrado – seus frutos, flores e raízes – anunciam a vida que se busca organizar na aldeia a partir da reconquista das terras que lhes foram usurpadas.

A experiência do Povo Kaxixó evidencia a relação vital entre a construção identitária e a efetivação dos direitos fundamentais dos povos indígenas. E evidencia também o papel da educação neste processo.

Professoras(es) e estudantes da UEMG – Unidade de Cláudio e lideranças do Povo Kaxixó vêm trabalhando, desde 2020, em um projeto de extensão que tem como objetivo a reelaboração de um currículo intercultural para a escola da aldeia.


Imagem de Destaque: A. Baeta. / CedeFes – Lideranças Kaxixó: Zezinho e Djalma (já falecidos) participando da “Marcha Indígena – 500 anos de Resistência” em Belo Horizonte no ano 2000.

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