Daniel Blake e a EJA: o avanço neoliberal e as insurgências cotidianas

Daiana Maria da Silva

Quando assisti “Eu, Daniel Blake” pela primeira vez fiquei em suspenso do começo ao fim e algum tempo depois do filme. Era desvelada cena a cena, fala por fala essa sensação de medo que vivenciamos cotidianamente. Pessoas que trabalham doente por medo da perícia. Adoecimento físico que amplia para o adoecimento mental por ação ou ausência dela.  A miserabilidade que cresce por ineficácia da seguridade ou assistência.

Era o neoliberalismo escancarado pela sétima arte.

Resolvi passar o filme para minha turma de EJA ao fechar uma sequência didática sobre mundos do trabalho. Calculei algum impacto, mas jamais poderia imaginar a repercussão.

O mesmo silêncio que me atravessou se fez presente. E só no outro dia descobri que parte significativa da turma era, em alguma medida, Daniel Blake.

Um estudante que era cabeleireiro e já adulto descobriu uma doença degenerativa que atualmente está em estágio avançado.  A doença tem tirado a visão e os anos de embate com o INSS lhe tirado a esperança com a possibilidade de seguridade. Outro estudante industriário também está há tempos em luta com as perícias. Outro é viúvo e precisou fazer muitos malabarismos para trabalhar informalmente e cuidar da filha pequena. Ele só descobriu anos mais tarde que tinha direito a pensão pelos anos de contribuição da esposa. Um trabalhador rural que, mesmo adorando viver no interior e trabalhar na terra, migrou para cidade para ter algum direito. Uma mulher que se tornou mãe ainda adolescente e, desde então, trabalha quando consegue na informalidade por não ter rede de apoio. Todos abandonaram os estudos ainda criança para adentrar nos mundos do trabalho sem ter parte considerável de seus direitos garantidos.

Era o set na sala. O enredo cotidiano da vida daqueles que insurgiam voltando a estudar na EJA para não deixar o sistema destruir suas esperanças e a humanidade negada na ausência do Estado, devorado pelo neoliberalismo nosso de cada dia.

Quando o silêncio deu lugar ao debate na aula seguinte, o efeito pedagógico do filme foi freireano. A percepção que as agruras vivenciadas por cada trabalhador(a) não era resultado do fracasso ou drama individual, mas método da escalada neoliberal contra a classe trabalhadora e o Estado foi a pequena insurgência do trabalho desenvolvido até então.

A sensação que uma sala de aula com todas as suas limitações é, como bem nos ensina bell hooks, lugar de transformação social foi compartilhada. A EJA era para cada um de nós a insurgência contra o sistema que nos nega cidadania e a certeza do que Daniel Blake nos ensinou: somos cidadãos(ãs). Nada menos do que isso.

Sobre a autora
Professora das redes municipais de Betim e BH. Mestre em educação. Apaixonada pela EJA e por boas histórias.

Para saber mais
FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. São Paulo: Autores Associados, 1989.

HOOKS, bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. Tradução: Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: Editora Martins Fontes. 2017.

LOACH, Ken. Eu, Daniel Blake. Inglaterra, 2016.


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