Poderia rodopiar as sombras do teto por onde desejasse. Nunca as tirara dali. Seria como trocar a pele e abrir a porta da geladeira. Desprezava novidades. Lugares fixos eram seguros. Coisas novas não entravam em seu mundo. Para alguns, ele nascera sentado ali. Pescoço fino, anguloso. Pernas sem carne. Pouco peso para os cinco anos completos. Abandonado em uma calçada suja, nunca reclamou de sua condição. Comia quando lhe obrigavam. Nenhuma fala. Destituído de palavras, mirava o teto. Balançava soluços na gangorra imaginária. E para quem desejasse convencê-lo a descer o olhar, uma grossa porta de madeira atravessava as intenções. Já dormira no centro da sala. Apagara com o rosto voltado para o alto. Vencido pelo cansaço, agarrado às próprias pernas, mergulhado em outras sombras. Pilo era um menino com dificuldades de comunicação. Morava em um abrigo superlotado. Crianças entravam e saíam carregando as suas dores prematuras, reféns nas garras dos medos de longas unhas. Unhas que pareciam não atingir Pilo. Ou nele faziam morada. O mundo não seria o mesmo sem Pilo. Mas essa é outra história. Deu-se que, em uma tarde de bonança, as crianças foram levadas para conhecer uma biblioteca infantil. Ninguém percebeu que a madrinha do evento tomara Pilo ao colo e o sentara no ônibus abafado. O teto recurvado do veículo foi bastante para o menino procurar as suas sombras. Enquanto atravessavam as ruas da cidade, o sol fez a gentileza de desenhar-se por toda a parte. Sombras velozes bordaram o teto do transporte. Sombras arredondadas alongavam-se na esquina fechada e fugiam pela janela aberta. Outras invadiam o forro gasto dos bancos ocupados. O teto ganhava movimentos tão rápidos que Pilo suspirou de excitação. Ninguém percebeu. Sem fazer choros de tempestade, ele permaneceu angulando o pescoço fino até perder de vista as sombras que se projetavam e, imediatamente, traziam outras. Outras. Outras.
Novamente no colo, foi deixado ao lado das crianças que Pilo não sinalizava perceber. As luzes da biblioteca comunitária lambiam as paredes forradas de livros. Pelas janelas abertas, o sol manteve-se gentil. Como em um beliscão, esgueirou-se por entre as cortinas de bambu e tocou o pé direito da casa adaptada. De lá, foi subindo e subindo e subindo. Parou em frente a uma prateleira recheada. Também ninguém viu quando Pilo se levantou e percorreu o caminho do compassivo raio de sol. É mais ou menos assim quando as crianças dos outros estão em grande número. Elas precisam dominar a arte das manifestações de tempestade para angariarem atenção para si. E esse não era o forte do menino destituído de palavras. Andou cambaleando sobre as pernas finas demais, com o olhar que descera do teto e se enrabichava no gentil fio de luz. É possível que o sol também guardasse uma criança em seus múltiplos braços, pois a forma como conduziu Pilo parecia muito com a arte do convencimento por fruição. O beliscãozinho de sol serpenteou por tempo suficiente sobre a parede coberta. Insistiu na parada. Fez preguiça na capa dos livros. Iluminou o já iluminado. Cutucou as cores daquelas obras. E projetou sobre cada uma delas o que apenas Pilo viu. Quando deram conta, o menino estava rodeado pelos livros retirados da prateleira e, folheava-os. Se se pudesse registrar, teriam visto a lágrima do raiozinho. Parados, ele e Pilo, na fonte de tantos colos. As mãos de pele seca e craquelada de Pilo moviam-se com o cuidado retórico de um excelente orador. Os olhos antes vazios lombrigavam algum mundo. Ou mundos. Mergulhavam, gulosos, com a lentidão do sabor recém-descoberto. Os dedos desnutridos pelo tempo de inanição nas ruas, golpeava com luvas as páginas ilustradas. E ele sorria. Sorria para alguém, ou quem sabe, alguém lhe sorria. O lampejo do agora inundado pelo tesouro das histórias não estava no raiozinho de sol. Benzia a cabeça do menino. Untava a sua cognição na medida do improvável. Afinal, até o momento ninguém obtivera êxito na interação com Pilo. Além dele e o teto, apenas o teto novamente. Contudo, as palavras negadas corriam maratona. Agrupavam-se, ininteligíveis, provocantes. Quiseram elas, de pronto, acionar um dicionário líquido. Mas ali era uma biblioteca infantil. Dicionários alojam-se em museus, e são quase mancos, senão paralíticos. Os livros e suas histórias não economizam atualidades. São atemporais, sempre na moda e na boca das crianças. No colo, ou embaixo dos braços que ensaiam voos – quando não lhes colocam em gaiolas de vidro, fato! Os livros infantis, mesmo que lhes roubem o acesso, mesmo que os usem para falar do desnecessário, mesmo que pareçam servir a desbocados monstros de paletó, guardam trilhas secretas. As crianças que furam gaiolas de vidro só o fazem por descobrir essas trilhas. Trilhas com gosto de algodão-doce em dia de passe livre. Trilhas com portas e portões, cavernas e dragões. Caminhos que nunca estão onde dizem dar. E jamais contam para onde gostariam que fossem. São trilhas de cumplicidade silenciosa e nunca traiçoeiras. Seria possível Pilo descobrir esse jogo de mostra e esconde o que está onde não se encontra? Parecia. Mesmo sem as palavras na boca, ele sorria para elas. E chamava as figuras. Os sons trancados por tantos anos não as assustavam. De dentro do menino, algo se abria. Rasgava sem machucar. Tocava sem se dizer novo. Pilo deixava as sombras para encontrar um espelho de vida. E esses espelhos, quando instalados aos olhos de uma criança, ninguém quebra. Como anzol de perna dupla, os espelhos de crianças refletem mundos prontos e mundos a se construir. Não se negam a dizer do pão e das sementes. Nem escondem que muitos nada têm e poucos têm demais. Esses espelhos não quebram, mas podem dizer quem o faz. Vão para debaixo da cama e não matam o lobo: ensinam proteção. Sobem os travesseiros e afofam cuidados. Cuidados que as crianças precisam aprender para se manterem crianças. Pequenos não são tijolos. Pequenos têm reflexos. Basta não os fechar em gaiolas de vidro. Basta que lhes permitam escolas e livros. Histórias e bibliotecas de janelas baixas.
Pilo passou a tarde na companhia dos livros que retirou da prateleira. O pescoço diminuíra a curvatura. A cabeça, parecia leve. Quando de volta para o ônibus, levava entre as pernas encolhidas nos braços da madrinha do evento, alguns livros doados. Junto a eles, uma boa alma, talvez parente do sol, colocara uma caixinha de lápis de cor. O menino jamais tocara em nada que se parecesse com tal tesouro. Os olhos descidos, fitavam as cores nas capas gastas. Lentamente levava os dedos de um lado a outro. Juntava as palmas das mãos por debaixo do presente e sobre ele dava guarida. No ônibus, esqueceu-se de procurar o teto. Diante das sombras do final de tarde, Pilo seguia outras trilhas. Páginas de livros têm a habilidade de provocar emoções, especialmente quando abrem histórias para o mundo ver. Ler? Também. Mas alguns livros não carregam letras, o que não lhes impede de apresentar baús de acontecimentos. Cornucópias de imagens jamais pintadas. Leituras de faces abertas. Faz parte da natureza do livro. São vários em um. E não precisam de energia externa para levantar pontes, estourar pipocas, perfumar as mãos que lhes tocam. Mãos que tocam livros são mãos que não aceitam o cativeiro da ignorância. São mãos livres e leves. Fazem conchas do mar, do céu, da terra…fazem conchas de crocodilo. Opa! Fazem crocodilos em conchas, especialmente quando eles estão famintos. Mas isso é para dizer que as mãos que descobrem a natureza dos livros nunca ficam só. Elas conseguem alcançar outras mãos, e mãos de quem não tem mãos também. São capazes de prometer de dedinho e não traem a imaginação. Essas mãos levantam mundos. E os mundos agradecem.
Talvez Pilo não saiba, mas os livros que agora ele fita estão travando um lindo diálogo: o diálogo da leitura. E é diálogo mesmo, desses que não tentam iludir ou separar. A leitura que Pilo está fazendo deve ter outro nome, mas no universo dos livros, só interessa a conversa do menino que encontrou abrigo nas páginas da literatura. Era uma vez um gentil raio de sol. E uma biblioteca comunitária. No teto das impropriedades, moram as sombras que precisamos combater.
Imagem de destaque: Glen Noble / Unsplash