Ibirité, 08 de março de 2018
Amigo Sandro,
Tenho gostado da nossa prosa neste espaço (PEPB) . Como bem sabemos, o exercício do magistério da educação básica nem sempre “deixa” tempo para algumas reflexões. Em especial, não sobra tempo para a refletir sobre a nossa prática docente. O tempo que há, é quase exclusivo para as trocas de horários, de salas, de classes, de escolas, de turnos, preparação de aulas, provas… (tudo milimetricamente arranjado para que, efetivamente, não pensemos). Assim, é bom tê-lo como interlocutor nesse espaço, com o compromisso de escrever e dialogar sobre as “coisa” da educação.
Para efeito de compreensão desse relato, segue, antes, como prolegômeno, brevíssima explicação:
No ir e vir por escolas públicas da educação básica, no (in)cansável exercício do magistério, sempre achei imprescindível atentar para os pequenos e cotidianos acontecimentos daquilo que ocorre nesses espaços de educação por onde circulo. Ainda que, aparentemente, as aulas constituam o que há de mais importante no interior dessas instituições, tomo a liberdade de parafrasear Adélia Prado para afirmar que NÃO. As aulas não são o que há de mais importante. O mais importante é o sentimento. É por meio do sentimento que impulsionamos a vida e, dessa forma, a existência passa a ter sentido. Por que não dizer que as aulas… o aprender e o ensinar… as múltiplas relações estabelecidas… tudo isso faz parte do sentimento. Ninguém fica ou está impassível diante do mundo que borbulha no interior de uma escola. Impossível a prática da apatia!
Assim, utilizo esse espaço para socializar com você como foi meu recente retorno a uma escola da Rede Estadual de Educação. Trata-se da mesma escola que me acolheu quando iniciei o ofício de professor. Daquele espaço, fiquei afastado por longos anos e, ao retornar recentemente, procurei dialogar, de imediato, com os antigos colegas que permaneceram durante a minha longa ausência. É sempre bom reencontrar velhos amigos. Além desses, conversei também com os que ingressaram depois. O diálogo travado com essas pessoas contribuiu para constatar atos de permanências e de rupturas. Diante do novo quadro, foi fácil juntar as duas pontas desse mesmo enredo, pois algumas antíteses produzidas ao longo dos anos acarretam efeito sobre o espaço, as pessoas e, como não poderia deixar de ser, sobre a gente também.
A bem da verdade, a escola parece “paradinha” no tempo. Teima em não se adequar às infinitas e explícitas mudanças que ocorrem no mundo. Ela parece “fechadinha” em si mesma e permanece ignorante ao mundo externo que, fora dela, funciona às avessas. Se inicialmente, ao chegar, os professores mais novos pareciam diferentes, com o passar dos dias e o desenrolar dos acontecimentos, foi fácil perceber que não eram: repetiam, como antigamente. Por um lado, os mesmos movimentos, as mesmas ações; as queixas eram idênticas e o procedimentos também se pareciam… O mesmo cansaço, as mesmas reclamações, os mesmos salários e o mesmo entendimento sobre o descaso por parte das autoridades políticas do Estado e do País. De outro lado, pessoas felizes pelo trabalho que realizam, atendendo de maneira respeitosa os estudantes e colegas, receptivas ao novo, altruístas… Não muito diferente de há alguns anos. Nesse retorno, eu mesmo, me reconheci agindo como antes, como se nunca houvesse arrancado o pé dali. Era o mesmo de sempre, com pouquíssimas alterações. Também em relação aos meninos e meninas não era diferente. Eles se pareciam com seus pares de antigamente. A grande diferença dos de antes para os atuais é que, agora, os jovens dialogam mais com os smartphones que com a aula, com os colegas e com os professores. Por vezes, ignoram, literalmente, a presença do docente na sala de aula e “viajam” no mundo virtual.
Para que você tenha a compreensão dessas “pequenas” mudanças, foi necessário tomar a recepção de meus colegas professores como algo revelador daquilo que parecia imperceptível, mas era apenas mais do mesmo. Foram esses colegas que, de modo peremptório, e sem muitas palavras, me ajudaram a compreender que a passagem do tempo se dá na vida privada das pessoas e não na instituição escolar: o tempo passa, a gente vira “senhor/senhora” e a escola continua em câmara lenta, sem querer sair do lugar.
Nessa mesma escola, já fui um dia, um dos profissionais mais jovens. Hoje, os atuais novos colegas me chamam de “senhor” e ao pronunciarem o vocativo me transportam, pela memória, ao meu primeiro ano de magistério: lá – tempos atrás – rapazes e moças do extinto “segundo grau” – à época, pouco mais novos do que eu – também me chamavam de “senhor”. Tal recorrência me permitiu juntar as duas pontas dessa história e, como Bentinho – aquele famoso personagem machadiano – quis entender: além do tempo implacável e contumaz, em que consiste a diferença entre os dois senhores (o de antes e o de agora)?
Para ajudar nas reflexões sobre essas amenidades, convoquei a já citada Adélia Prado e sua “Dona Doida” – duas (antigas) senhoras amigas. Então, vamos ao que interessa:
Desde a primeira publicação, em 1991, que os versos de “Dona Doida” me provocam e incomodam. Volta e meia, cito esse poema, numa espécie de sagrada devoção [e lirismo]. Há um certo prazer em resgatar dos escombros da memória e fazer esse poema ressurgir saltitante, quase em prosa para meu deleite. Então, sem parcimônia, de modo quase vivo, convoco também as imagens que ele suscita. Assim, sou tomado pelas mãos de Adélia e por sua poesia que me instiga, me toma de prontidão e me arrasta, exigindo evocar o poema e sua autora, mesmo em silêncio. É como se essa poesia não permitisse adormecer e me convocasse, de modo imperativo, para o confronto. Ou ainda: como se quisesse colocar à prova sua onipresença. Espera aí, amigo, que já volto a falar de escola!
Alguns textos são plenos dessa capacidade de tomar-nos pelas mãos – a cada (re)leitura – e de nos fazer enveredar por caminhos antes não percorridos, num movimento cíclico de percepção sobre o mundo, as pessoas, as relações, a vida… Em meu entendimento, é assim com “Dona Doida”. Esse poema que fala de um tempo que possui o dom de ir e vir. Anacrônico; atemporal; cósmico; quiçá, intangível; um tempo sem tempo. Ou acima do tempo, um “troço” sem controle rítmico sobre a própria (de)cadência. Um quase devaneio. A mim, esse poema fala de uma mãe que sempre existiu e que não há mais para além da memória. Por ter cumprido, um dia, o seu papel de mãe, diuturnamente continua a trazer consigo o poder de perscrutar, mesmo sem palavras, em mudo e áspero silêncio. O que me faz indagar: o que incomoda mais, a mãe desaparecida ou sua presença-ausência? Será que seu corpo continua insepulto e por isso dói em mim?
E aquele tempo chuvoso que Adélia nos apresenta? Em minha meninice – travessa e nada virtual – aquelas trovoadas e clarões me atormentavam a alma com seu prenúncio purificador de que haverá, depois da chuva caída, boas poças para o meu êxtase. “E as poças tremiam com os últimos pingos”. E as trovoadas e clarões não representavam mais do que uma divindade zangada por alguma maldade cometida por nosotros, do lado de cá, nesta terra de meu deus. Alentava saber que a mãe estava no encalço, cuidando “do de comer”, realizando suas tarefas que, mesmo simples, eram também divinas, buscando inspiração para fazer emergir o extraordinário, do ordinário. Decidida, anunciava, num quase frenesi: “chuchu novinho, angu, molho de ovos”. Eita, delícia! Era como se quisesse recitar um poema. Não, não: ela recitava mesmo um poema!
Nos saltos do tempo, eu retorno “trinta anos” mais tarde. Sem a proteção da mãe, agora quem me acolhe é o destino. De modo paradoxal, tudo igualmente mudado. Tudo (re)mexido. Tudo (re)virado pelos contornos espiralados deste tempo cíclico que não cessa de propor recomeços. Recomeços que me endoidecem, pois se tudo mudou, por que somente a escola permanece quase imexível, como se nada tivesse alterado no mundo?
Como prometido, volto a falar de escola! Após tantos anos ausentes, em minha escola de origem há novos personagens executando o mesmo papel. Há ali, como antes, o mesmo enredo, o mesmo script, o mesmo tratamento, dado de modo preciso a meninos e meninas “bagunceiros”, por vezes, em alto e bom som: “eu já cansei de falar que não quero ninguém no corredor!”, “cala a boca! Silêncio!”, “se não tiver de uniforme, não entra”, “pelo amor de Deus, vou ter que chamar a sua mãe”, “esse menino não tem jeito!”, “Deus do céu, quem dá conta disso?” e bla-bla-bla…
Há tempos, neste mesmo lugar era também assim. Tudo muito igual. Tive que afastar. Fui buscar chuchu novinho nas cercas de outras vizinhanças. Sumi daquela escola, levando saudade e alguns aprendizados. Ao retornar – muitíssimos tempos depois – algumas mudanças: o lugar (agora, mais limpo e com quadra coberta), as pessoas, o modo de abraçar, de abrir ou conter o sorriso… eu mesmo, um outro homem. Não mais um jovem saltitante e deslumbrado com as poças d’água! Nem o mesmo militante aguerrido com as causas da educação.
Nesses novos tempos, me vejo como alguém que aprendeu bastante. E mesmo contido em devaneios, sou homem sério, de cabelos “gris”. Agora, com tanta preocupação no mundo – estamos meio caducos (eu e o tempo) – eu me tornei um pouco esquisito. Isso também é avassalador. E o mundo – eu sei – não é mais do que os meus próprios pensamentos. Ademais, reitero, a mãe dá mostras de não estar mais “lá”. Ela nem veio abrir a porta para o filho esquisito que regressa ao lar. Além de duas antigas colegas de tempos passados, os rostos surgidos, no limiar desse novo tempo escolar, eram mais jovens e me chamavam de “senhor”. Vasculhei os cantos, pela presença da mãe. Efetivamente, virou memória… saudade! Penso que ela não quis esperar tantos anos. No entanto, em seu lugar, surgiram uns professores muito novinhos, insistindo em me chamar de “senhor”. Não me importo com isso. Ao contrário de algumas senhoras, que costumam dizer “senhora, tá no céu!”, eu não ligo! Pois a mãe, inspirada em Hamlett, ensinou que “há mais coisas entre o céu e a terra do que pode imaginar nossa vã filosofia”, por isso, não me impregno com essas amenidades.
Reconheço a passagem do tempo e sua inexorável razão. Nem o sindicalista e militante das causas coletivas eu sou mais. Não me vejo como quem carrega a mesma bandeira de outros tempos, e que, afoito, trazia em si o desejo e a crença de que as mudanças eram possíveis por meio da luta cotidiana (ou armada?). Estou mais comedido, mais ponderado, hoje, carrego a certeza de que as mudanças – mesmo as imperceptíveis – acontecem. E essa ocorrência nem sempre está em conformidade com nossos desejos, contudo, para que aconteça à medida de nossa vontade, sei bem da necessidade de realizar alguns movimentos para que não ocorra à revelia de mim. À revelia de nós mesmos!
Aos vinte e pouco anos, quando iniciei no magistério, era estranho escutar os jovens estudantes me chamando de senhor. A primeira vez, tive uma súbita turbação e me pegava indagando baixinho: o que acontece com esses meninos? Sou pouco mais velho que eles! Por que, senhor? Era uma indagação com a certeza da inexistência de resposta única.
Os anos passaram e, ao retornar para a velha… sempre velha, escola, agora, são os colegas professores – quase todos desconhecidos e mais jovens – que pronunciam, no campo da indagação, aquele mesmo vocativo (que aos meus ouvidos soa como se esses jovens docentes quisessem saber): – por que ficou assim, tão professoral, meu senhor? Por não ter resposta exata, eu também me pergunto: passados todos esses anos e, agora, defronte com a gênese de minha atuação docente: o que significou no início da carreira ser chamado de senhor? E o que significa agora? São convenções sociais do nosso tempo e da própria escola? Fui eu quem ficou senil e intrigado com a passagem meio louca do tempo ou a escola que insiste em permanecer “com sombrinha infantil e coxas à mostra”? Essa doninha velha chamada escola não permite amadurecer e insiste em ser sempre igual!
Se perguntarem para mim, assim como Adélia – sem pretensão de responder por completo – digo que continuo doido no encalço e acrescento, como quem quer confundir, “só melhoro quando chove”.
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