Controvérsias sobre a retomada das aulas presenciais: as aulas valem mais que a vida?

Paulo Roberto da Silva Junior¹

Mariela Rocha²

             Paloma Porto³    

A pandemia de Covid-19 tem produzido impactos profundos no ensino no Brasil em todas as dimensões escolares. Desde março de 2020, depois que a disseminação do novo coronavírus foi caracterizada como pandemia pela Organização Mundial de Saúde, assistimos à eclosão de várias controvérsias em torno das medidas restritivas. É o caso do debate sobre o  fechamento e/ou abertura das escolas. Mas quais seriam tais controvérsias?

Encerramos o mês de março de 2021 como o mais letal da pandemia de Covid-19 até o momento, alcançando o registro de 66.573 óbitos, e com o sistema de saúde em colapso, o que torna o novo coronavírus ainda mais mortal. Segundo a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), a América do Sul é a região mais preocupante do mundo, na qual o Brasil está em meio a uma espiral ascendente de infecções e lidera estatísticas globais de casos, alcançando mais de 4.000 óbitos em 24 horas. Além disso, o ritmo da vacinação encontra-se em estágio lento, o que completa o quadro de crise sanitária e humanitária vivenciado pela população brasileira.  

Enquanto acompanhamos o crescimento vertiginoso da infecção e mortalidade do vírus, somos bombardeados, na lógica da infodemia, com notícias sobre as inúmeras tentativas de retorno às aulas em diversos municípios brasileiros. Por vezes, parece que estamos no romance saramaguiano: uma epidemia de cegueira que nos assola e que nos faz lutar e competir pela sobrevivência reafirmando incansavelmente coisas óbvias.

Sim, a cegueira da ignorância tem se alastrado de forma pandêmica, seja por meio da negação da realidade, dos dados científicos ou da falta de empatia diante do número altíssimo de pessoas que não tem direito à comida, não têm direito à respiração. Uma ode à ignorância, uma demonização da ciência e da política, uma indigência intelectual que espetaculariza o desconhecimento e torna-se uma arte de governar, os ignorantes (Casara, 2019).

A política da morte, ou seja, a necropolítica (Mbembe, 2018), tem ocorrido por meio da gestão central federal que incentiva a propagação do vírus através de um modelo de atuação pautado no excesso de normatizações e a ausência de direitos, produzindo inúmeros conflitos políticos e judicialização de vários eventos (Ventura; Bueno, 2021). Dentre as inúmeras disputas políticas e jurídicas, encontra-se a abertura e o fechamento das escolas no país. 

Uma busca realizada no Google nos primeiros dias do mês de abril de 2021 com o termo “retorno às aulas” devolveu, aproximadamente, 49.100.000 resultados em 0,68 segundos. As primeiras notícias apresentadas relataram as muitas contendas jurídicas, ou seja, brigas por liminares autorizando e cancelando o retorno às aulas em estados como Rio de Janeiro, São Paulo, Mato Grosso, Paraná e Pernambuco. 

Avaliamos que diversos têm sido os atores que têm pautado essa disputa judicial, mas queremos chamar atenção aqui para os pais, cuidadores e familiares das crianças e adolescentes matriculados em escolas particulares, os quais têm protagonizado um verdadeiro espetáculo pelas cidades brasileiras: coroas de flores na porta dos colégios, como em Belo Horizonte; concentração de carros com balões e cartazes no estacionamento da Secretaria Estadual da Educação na cidade de Salvador; ou a carreata em direção ao Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul na cidade de Porto Alegre. Em todas as manifestações, verificam-se dizeres como: lugar de criança é na escola, volta às aulas já, pelo direito de escolha, educação já, SOS aluno, etc.

Compreendemos que a escola cumpre o importante papel de construir conhecimentos e formar cidadãos críticos e conscientes sobre a realidade social, fazendo uso da interação social como ferramenta primordial para o aprendizado e para o desenvolvimento do aluno(a). É através da ação no mundo, da interação com o outro, que o conhecimento se constrói no interior da escola. 

Não descartamos, desse modo, que o contexto do isolamento físico imposto pela pandemia tenha trazido prejuízos para o aprendizado e para a socialização de alunos e alunas, acarretando, inclusive, agravos na saúde mental. No caso das populações periféricas, acrescenta-se o papel da escola para a saúde nutricional de crianças e adolescentes, que nesta conjuntura precisou se reorganizar para continuar dando esse tipo de suporte.

Também, reconhecemos que, para além das dificuldades inerentes ao ensino remoto, em um contexto social profundamente desigual como o da sociedade brasileira, o acesso a esse formato de ensino se dá de forma diferenciada a partir dos marcadores sociais de classe, raça, gênero, orientação sexual, território, etc, dos alunos(as). Ou seja, o contexto sindêmico (Singer, 2017) tem reforçado as desigualdades e quanto mais preta, pobre e periférica a população, menor tem sido suas condições de acompanhar o ensino remoto, pela precariedade ou até a ausência de aparelhos tecnológicos, acesso à internet ou espaço apropriado nas residências.

Diante dos argumentos que apelam para os déficits no aprendizado e na socialização ou os agravos na saúde mental de crianças e adolescentes, o desgaste vivenciado por pais ou cuidadores no acompanhamento das atividades escolares remotas, a não diminuição das mensalidades escolares ou o contexto de desigualdade que impede um acesso democrático ao ensino remoto, como bastiões para a defesa do retorno às aulas, nos perguntamos: quem vai se responsabilizar pela continuação da transmissão, do contágio e das mortes provocadas?

Do outro lado desse embate encontram-se, também, pais e cuidadores, instituições escolares, professores/as, alunos/as, sindicatos profissionais, profissionais da saúde e cientistas defendendo que as aulas devem retornar quando houver segurança, considerando os indicadores epidemiológicos e quando a vacinação já estiver avançada a ponto da população alcançar imunização coletiva via vacina.  

Em Nota Técnica de março de 2021, a Fiocruz apresenta considerações sobre política de restrições e as atividades escolares considerando os efeitos prejudiciais da interrupção prolongada do ensino presencial sobre as crianças e adolescentes, reconhecendo as atividades escolares como serviços essenciais, mas ponderando que ”no atual momento os indicadores da transmissão comunitária expressam a necessidade urgente de tomar medidas mais efetivas de lockdown ou restrições” (Fiocruz, 2021). Essa é a única medida capaz de “achatar a curva”, diminuindo a mortalidade e garantindo a descompressão do sistema de saúde. Portanto, as escolas devem permanecer fechadas, até que haja a redução das taxas de transmissão comunitária* e ampliação da capacidade do sistema de saúde. 

Considerando que o contexto da maioria das cidades brasileiras é de crescimento contínuo das taxas de transmissão e de queda da capacidade do sistema de saúde tanto pela ocupação de leitos, quanto pela falta de insumos hospitalares e ritmo lento de vacinação, somados às dificuldades impostas à educação pela pandemia pela falta de coordenação e estrutura. 

Por fim, mesmo quando os indicadores epidemiológicos estiverem satisfatórios ainda serão necessários alguns cuidados para o retorno como, entre outras indicações presentes na Nota Técnica da Fiocruz (2021), garantia de segurança no transporte público, o reforço das medidas não farmacológicas, como uso correto de máscaras, distanciamento físico e higienização das mãos e o rastreamento de casos e contatos.  

 

*Segundo o Centro de Controle de Doenças dos Estados Unidos – CDC, as taxas de transmissão são consideradas altas quando há um número maior do que 100 casos por mil habitantes e baixas quando houver um percentual menor que 10% de novos casos ou se a taxa de positividade estiver menor que 5%. 

 

1Paulo Roberto da Silva Junior é pesquisador de Pós-Doutorado no Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva do Instituto René Rachou/Fiocruz Minas e professor da Faculdade Arnaldo. Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil.

E-mail: paulosilva.junior@yahoo.com.br

2Mariela Rocha é pesquisadora de Pós-Doutorado no Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva do Instituto René Rachou/Fiocruz Minas e do Centro de Estudos sobre Comportamento Político (CECOMP) do Departamento de Ciência Política da UFMG.

E-mail: mariela.rocha@gmail.com

3Paloma Porto é pesquisadora de Pós-Doutorado no Programa de Pós-Doutorado em Antropologia Social da UFRGS e pesquisadora da Rede Covid-19 Humanidades do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI).

E-mail: palomaporto@gmail.com

 

Para saber mais: 

BARBERIA, L.G.; SCHINIDER, A. “É hora de fechar as escolas”. Folha de São Paulo, 08 mar 2021. Acesso em: 07 abr 2021. Disponível aqui

CASARA, R. Viva a ignorância! Como rir, chorar e enriquecer no mercado da miséria intelectual. Revista Cult, 09 set 2019. Acesso em: 07 abr 2021. Disponível aqui

FIOCRUZ. Nota técnica Nº 01 – 03/2021 da Vice-Presidência de Ambiente Atenção e Promoção da Saúde (VPAAPS/Fiocruz). Grupo de Trabalho Retorno às Atividades Escolares Presenciais, instituído pela portaria 5.608 de 1º de setembro de 2020 – Fiocruz. Considerações sobre política de restrições e as atividades escolares por ocasião da pandemia de Covid-19. Acesso em: 07 abr 2021. Disponível aqui

MBEMBE, A. Necropolítica. 3. ed. São Paulo: n-1 edições, 2018. 

SINGER, M. et al. Syndemics and the biosocial conception of health. The Lancet. v. 389, n. 10072, p. 941-950, 2017. 

VENTURA, D. F. L.; BUENO, F. T. C. De líder a paria de la salud global: Brasil como laboratorio del “neoliberalismo epidemiológico” ante la Covid-19. FORO INTERNACIONAL, Vol. LXI, 2 (244) abril – junio, p. 427-467, 2021.


Imagem de destaque: Pixabay

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