Controvérsias, museus e exposições: será esse um bom momento para incrementar a relação entre museus e públicos?

Martha Marandino
Djana Contier

Fonte: Folha de São Paulo – 10/09/2017
Fonte: Folha de São Paulo 28/09/2017
Fonte: Revista Época – 18/09/2017
Fonte: Nexo Jornal – 03/10/2017
Fonte: El País – 04/10/2017

Acompanhamos, recentemente,os episódios relatados acima, com espanto, indignação, mas também com curiosidade e espírito investigativo. Parece que o grande público se deu conta que os museus existem e que são, também, lugares de controvérsias, seja entre aqueles que produzem os conhecimentos existentes em suas coleções e exposições, seja pelos temas que seus objetos revelam, seja entre o museu e seus públicos. E isso pode ser bom, mas vai depender muito de como a sociedade – indivíduos, famílias, instituições públicas e privadas, artistas, pesquisadores, diretores de museus, cientistas, etc. – lidam com esses fatos!

Um primeiro espanto a ser comentado refere-se à forma com que a instituição Santander Cultural encaminhou a questão e não tanto pelo fato de haver protestos em relação a exposição “Queermuseu” propriamente dita. A arte muitas vezes provoca o público e é esperado que provoque. Está aí uma de suas funções sociais. Como ilustra Renato Janine em entrevista ao Nexo Jornal:

A arte tem um elemento fortemente transgressor, sobretudo desde a metade do século 19, que é quando surgiu [o romance realista] “Madame Bovary”, do Flaubert, que foi processado na Justiça, quando Baudelaire escreveu “As Flores do Mal” e também foi processado, assim como Manet, pelo quadro “Olympia”. Seja na forma artística usada, seja nos temas, você tem um monte de elementos transgressivos. A arte tem essa característica. Não é pornografia. Não é a mera exposição de atos de violência ou de sexo, é uma busca de meditar sobre isso.” (Nexo Jornal, 3/10/2017).

O que nos surpreendeu nesse episódio do Santander Cultural foi o fato da instituição, sem diálogo, no meio de um feriado prolongado, sem nem sequer consultar seu curador, optar por encerrar a exposição sem maiores debates, com uma justificativa equivocada de que ao sediá-la não teve o objetivo de constranger ninguém e que ao se deparar com essa reação optou por fechar a exposição.Os protestos acusaram a exposição de blasfêmia a símbolos religiosos, pedofilia e zoofilia e, um ator relevante na polêmica, foi o MBL (Movimento Brasil Livre), reconhecido por suas pautas conservadoras. Em nome dessas manifestações, a instituição tomou a decisão de interrompê-la.

Mais recentemente, o Prefeito do Rio de Janeiro e bispo da Igreja Universal do Reino de Deus, Marcelo Crivella, nas palavras de Zuenir Ventura em título da coluna do Jornal O Globo Mais pastor do que prefeito, se manifestou contrário a apresentar a exposição no Museu de Arte do Rio/MAR, um museu público. O conselho do MAR cedeu e a exposição foi recusada. Esse panorama revela que os incidentes não estão isolados do momento social e político que o Brasil vive hoje: como revela Zuenir Ventura, basta ver a presteza com que Crivella vetou o ‘Queermuseu’ no MAR e comparar com a demora em se manifestar sobre a guerra da Rocinha. Contudo, também evidencia a dificuldade das instituições culturais em acolher temas controversos. Afinal, esses episódios não são incomuns: independente da temática, muitas vezes exposições incomodam as pessoas e geram reações inesperadas no público.

Os museus de ciência também são locais que vivenciam situações semelhantes às que se passam,neste momento, com as instituições de arte brasileiras. Esses espaços são, por excelência, promotores de diálogo entre ciência e sociedade, seja por meio de suas exposições ou de qualquer outra ação educativa. No entanto, Contier (2009)1, em sua pesquisa de mestrado, revela a pouca representatividade de exposições que problematizam as relações entre ciência, tecnologia e sociedade no contexto nacional. De acordo com a autora, a ausência dessas questões nas exposições dos museus pode ser compreendida por diversos motivos, como: a falta de recursos, os vários interesses políticos no interior das instituições, a falta de equipe qualificada, o pouco tempo para elaboração das exposições e a temporalidade de exposições de longa duração.

Recentemente discutimos alguns desses aspectos na publicação “Controvérsias em Museus de Ciências: Reflexões e Propostas para Educadores”. Nela, analisamos uma série de pesquisas relacionadas aos museus de ciências nacionais e internacionais que elencam alguns dos desafios para o trabalho com temas controversos em museus de ciências. O financiamento das exposições é um dos elementos que pode gerar tensões e, por isso, as controvérsias acabam sendo evitadas pelos espaços museais. A tensão entre interesses dos elaboradores de exposições e demais ações educativas e interesses dos financiadores tem se mostrado como uma força inibidora de ações que envolvam o tema.

Uma outra ponderação sobre a falta de ações museais na perspectiva das controvérsias refere-se ao seu caráter epistemológico, já que são questões pouco delimitadas, multidisciplinares e heurísticas, além de carregadas de valores (éticos, ecológicos, morais, educacionais, culturais e religiosos) e afetadas pela “ausência” de um conhecimento específico. Segundo autores que discutem esse tema, essas características atribuem alto grau de dificuldade para a elaboração de ações envolvendo questões sociocientíficas.

O caráter de valoração da ciência também aparece como cerceador da abordagem das controvérsias, pois elas são vistas como potencializadoras da desconfiança do público em relação às ciências, já que colocam em xeque a pretensa objetividade e neutralidade dessa área de conhecimento. Esses atributos de uma ciência considerada inequívoca, neutra e definitiva seriam considerados como representativos da visão de ciência predominantemente compartilhada pelos públicos desses espaços. Expor aspectos científicos que questionam essa visão requer formação, tempo e financiamento, nem sempre disponíveis aos setores educativos dos museus.

Outro desafio se refere ao fato de que informações e eventos mudam rapidamente, gerando o risco de que as exposições estejam “desatualizadas” quando abertas ao público. Além disso, pesquisas tem mostrado que nos museus é predominante o modelo de comunicação pública da ciência pelo qual cientistas “transmitem” seus dados a um público “meramente receptivo”, conhecido como modelo de déficit. Abordar temas controversos em museus requereria, portanto, reavaliar os modelos educacionais e comunicacionais em jogo nesses espaços.

Na edição de maio de 2017 da Revista Spokes da Ecsite (Rede Europeia de Centros e Museus de Ciências), foi publicada, na sessão de entrevistas, uma matéria com o título In total disagreement – How to respond to audiences who disagree with our offer?” (Em desacordo total – Como responder ao público que discorda da nossa oferta?). Para essa publicação, a revista procurou histórias sobre exposições científicas que causaram controvérsias e protestos do público. Nela encontramos entrevistas com diretores de três museus de ciências que tiveram que lidar com forte reação negativa do público em exposições específicas: a primeira no The Norwegian Museum of Science and Technology em Oslo, na Noruega, sobre a ciência islâmica; outra no La Casemate em Grenoble, na França,sobre nanotecnologia;e a última no Copernicus Science Centre em Varsóvia, na Polônia, sobre sexualidade.

Centros de ciência e museus frequentemente se envolvem em debates públicos e o conteúdo apresentado não é sempre (para não dizer, raramente) neutro. Os diretores de museus entrevistados na matéria relatam que foram confrontados com e-mails ameaçadores, viraram protagonistas de notícias falsas por causa do conteúdo de suas exposições, entre outros episódios desagradáveis. Ainda na matéria, os diretores contam por que as pessoas protestavam e como eles acabaram lidando com os acontecimentos, afirmando que apesar das adversidades, a experiência fez com que eles vissem seus públicos em uma nova perspectiva, apontando que a participação pode ser benéfica, mesmo que indesejada. As entrevistas destacam que quando os museus optam por expor temas que batem de frente com seu público, eles – entende-se, suas equipes – devem estar preparados para sair da zona de conforto e lidar (em tempo real) com uma avalanche de questões delicadas e complexas que não estavam postas na mesa a priori.

As reflexões apontadas nas entrevistas da Revista Spoke trazem algumas orientações sobre como reagir a episódios como esses mais recentes ocorridos nas instituições culturais do Brasil – que entre outras coisas devem estar preparadas a reações violentas por parte do público. Exemplos de manifestações recentes e importantes da comunidade artística e museológica é o movimento #somostodosmam e a carta pública em defesa da liberdade artística e de expressão divulgada em 2 de outubro pelos museus e centros culturais de todo o Brasil. Ela manifesta o repúdio pelas ações contra espaços institucionais de arte, assim como a toda e qualquer tentativa de cercear, constranger, desqualificar ou proibir as legítimas atividades artísticas que se desenvolvem no Brasil, construídas responsavelmente pelas instituições culturais.

Trabalhar com controvérsias, especialmente entre os museus e o público é sem dúvida uma tarefa desafiante da qual não podemos fugir amedrontados. Assim, nos parece que há muito ainda a ser feito para a construção de uma postura educativa dos museus para lidar com temas controversos. Para isso, é necessário criar espaços de reflexão e formação daqueles envolvidos com as várias etapas da cadeia museológica, desde a aquisição de coleções até a extroversão para o público. Como alerta Renato Janine, na entrevista dada ao Nexo Jornal, os casos ocorridos no país colocam em xeque qualquer exposição, pois elas começam a correr risco de desmonte frente ao contexto político de recessão vivido no país hoje, que favorece a culpabilização e acirramento de conflitos em termos étnicos, raciais e de comportamento. Na verdade, os próprios museus parecem estar sendo, mais uma vez na sua longa trajetória de existência, colocados em xeque. Resta, como sempre, a eles – e em especial aos educadores que neles atuam – refletir e propor formas mais criativas de se relacionar com os diferentes e reais públicos que parecem ter percebido ou mesmo lembrado que existem museus no Brasil.

1CONTIER, D. Relações entre ciência, tecnologia e sociedade nos museus de ciências. Dissertação de Mestrado. Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo. 2009.

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