Ana Pereira dos Santos*
Depois de agredida, Maria mandou um áudio para o locutor da rádio comunitária de seu aglomerado. Chorando e em desespero, contou que havia sofrido violência por parte da filha e estava machucada. Havia ligado para a polícia militar, mas não foram a sua residência em função da pandemia provocada pelo Covid-19. Ligou para o 180, disque denúncia do Governo Federal para os casos de violência contra a mulher, mas não tinha tido uma boa acolhida. Nas delegacias, pediram que ela agendasse um horário. Quando Maria ligou para a rádio, ela ainda não havia conseguido atendimento em nenhuma instituição. Talvez por isso a angústia que sentimos ao ouvi-la: sua fala remetia a um desamparo e também a uma profunda solidão. Estas, inclusive, são quase sempre características das mulheres em situação de violência. Quando decidem pedir ajuda, estão em uma situação emocional devastadora e só o fazem porque não há mais forças para seguir lutando sozinha. A continuidade do áudio não é fácil de se ouvir. Maria revela que está ameaçada e teme que a filha retorne e acabe de ‘rancar’ seus cabelos. É a quinta vez que é agredida. Desempregada, teve todos os pertences destruídos, não tem mais como viver.
A história acima é uma das muitas que acompanhamos no âmbito da pesquisa sobre Redes de Enfrentamento à Violência Contra a Mulher em Minas Gerais. Desde que começou a quarentena em função da pandemia do Covid-19, temos feito observação participante em um grupo de whatsapp composto por técnicos, militantes e sociedade civil que atuam na rede de enfrentamento de Minas Gerais. Saída inventiva para recriar a ciência, continuar a pesquisa e construir, para ela, alcance. Assim, também, tem sido para este grupo de mulheres quando acessam relatos como o de Maria. Isoladas fisicamente e reunidas virtualmente, a mobilização em torno do caso ocasionou um agenciamento de ideias e recursos diante do desafio do acesso às políticas sociais neste momento. Nos primeiros minutos de conversa, Maria já tinha abrigamento garantido. Com uma hora de diálogo, a polícia militar estava em sua casa. Na hora seguinte, Maria era atendida na delegacia e tinha a Medida Protetiva de urgência, prevista na Lei Maria da Penha, encaminhada.
Várias questões suscitam nossos afetos e nossa indignação diante deste episódio. Mas é a potência da vida coletiva que quero realçar. Principalmente aquela que acontece no contexto de processos educativos em políticas públicas. Embora sejam, em sua maioria, agentes públicos, a coesão promovida por essas mulheres sustenta mais que uma responsabilidade institucional, mas uma solidariedade compartilhada. Feministas, sabem da força que têm as redes de mulheres. Sobretudo aquelas que sustentam um corpo político para, juntas, construírem uma narrativa em comum, uma memória coletiva, aproximando sensibilidades e princípios éticos.
A luta contra a violência doméstica, mais que uma agenda pública em constante movimento e sempre às voltas com inúmeras ameaças, é também espaço de formação, no que poderíamos chamar, conforme nos orientou Paulo Freire, de Educação Popular. Popular porque acontece a partir da experiência viva, dos movimentos sociais, da mobilização de saberes e pertencimentos, da capacidade de produzir engajamento, reflexão e ação. Quando René Lourau, teórico da Análise Institucional, questionou a gênese da instituição, ele apontou não só sua natureza dialética e conflitiva, como também a existência da produção de uma relação de pertencimento da pessoa com a organização institucional. Esta relação, chamada por ele de “implicação”, pode potencializar o sujeito, convocá-lo à criação e à liberdade, ou promover efeitos opressores, gerando silenciamentos e adoecimentos. Mesmo que toda instituição queira impor sua tradição, suas regras e o que tem de mais rígido em sua genealogia como forma de manter-se viva, os processos inventivos, nômades, não cessam de querer promover a vida, questionar as hierarquias e a rigidez dos lugares de poder.
Trabalhadoras sociais, o grupo transita entre a rigidez das normas e dos lugares institucionais, mas arrisca-se a inventar o trabalho a partir de outros regimes de sensibilidades, como, por exemplo, a militância. Fora da institucionalização das políticas públicas, vivem juntas experiências comuns e produzem processos de subjetivação que deslocam a identidade rígida de servidor público para territórios cuja sustentação não passa pela burocratização ou pela negligência. Corajosas, revitalizam as políticas públicas através do próprio corpo militante, atuante, confiante em sua capacidade de produzir conexão e diálogo.
Nesse momento histórico, mais do que nunca, precisamos manter a vitalidade das políticas de proteção. Talvez estas mulheres nos apontem um caminho possível: viver coletivamente, reinventar as políticas públicas tensionando o institucionalizado para que ele possa se curvar ao novo, produzindo condições para a manutenção da vida, de todos e todas, a qualquer preço e em qualquer circunstância.
*Psicóloga, mestre em Educação pela Universidade Federal de Viçosa, doutora em Psicologia pela PUC Minas e pós-doutoranda em Saúde Coletiva no Instituto René Rachou – Fiocruz Minas
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Este texto integra uma parceria entre o Pensar a Educação, Pensar o Brasil 1822/2022 e o Instituto René Rachou (Fiocruz) para promover ações e reflexões em torno da Educação para a Saúde.
Imagem de destaque: Volkan Olmez / Unsplash