Censura nas escolas no Supremo Tribunal Federal: avanços importantes, mas não uma solução definitiva*

Juliana Cesario Alvim Gomes**

Júlia Silva Vidal***

Nos últimos anos, vimos eclodir uma reação conservadora aos parâmetros consolidados em torno do que consistiria uma educação adequada e qual o papel das escolas e do Estado, no desenvolvimento de um ensino plural e inclusivo para crianças e adolescentes. Tais parâmetros se consolidaram juridicamente no Brasil com a elaboração da Constituição de 1988, e têm origem em longo processo de amadurecimento social, estreitamente conectado com o processo de redemocratização, e com a defesa de uma educação transformadora.

Na contramão desses avanços, atualmente observa-se um movimento articulado de vigilância e censura nas escolas a pretexto de combater supostas “doutrinações marxistas”, a ameaça comunista e a ideologia de gênero, e favorável ao ensino religioso e fora da escola.

Os principais atores desse debate, alinhados ao movimento conservador global, retratam as demandas relativas a gênero como uma ideologia totalitária que utilizaria espaços como as escolas para desvirtuar crianças e adolescentes. Paralelamente, combinam argumentos em defesa de uma suposta liberdade religiosa e política para promover o “direito a uma escola não ideológica”, “escola sem partido”. Sob o argumento de uma pretensa neutralidade e tecnicidade, ocultam uma decisão ideológica de censurar certos temas no ambiente escolar a partir de visões desprovidas de qualquer embasamento técnico.

Nos últimos anos inúmeras tentativas de censura e silenciamento vêm sendo observadas, no âmbito educacional. Em caso que ganhou notoriedade, por exemplo, a Deputada Estadual Ana Caroline Campagnolo (PSL) incentivou, através de suas redes sociais, a gravação das aulas como forma de defesa, monitoramento e de denúncia contra supostas manifestações político-partidárias de professores, dentro de sala de aula. Ainda a título de exemplo, pode-se mencionar outro lamentável episódio, que ocorreu na última Bienal do Livro de 2019, na cidade do Rio de Janeiro, onde o prefeito Marcelo Crivella, alegando a publicação de conteúdo sexual para menores, pediu o recolhimento de todos os exemplares de livro de história em quadrinhos que ilustrava uma cena de beijo entre dois adolescentes do mesmo gênero.

Debates relativos a censura a ensino e material didático nas escolas se multiplicaram no âmbito municipal e estadual e chegaram, finalmente, ao Supremo Tribunal Federal (STF), por meio de mais de dez ações propostas perante a Corte. Uma parte delas buscava invalidar leis que, de maneira mais ampla, restringiam “doutrinação política e ideológica” em escolas, outra parte, a maioria, impugnava normas locais especificamente vedando temas relacionados a gênero e sexualidade.

Em abril deste ano, o Supremo, pela primeira vez, decidiu sobre a questão. Declarou inconstitucional lei municipal do Município de Nova Gama (GO) que proibia, nas escolas, o ensino e o uso de material didático referente a temas relacionados a gênero e sexualidade.

Na ocasião, o STF entendeu que essa lei municipal violava dois princípios relacionados à educação. O primeiro era a liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber (art. 206, II, CF/88), e o segundo, o pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas (art. 206, III, CF/88), reconhecendo, assim, que essa lei municipal é materialmente inconstitucional. Ainda, atestou que essa lei contraria o princípio de promoção do bem de todos sem preconceitos, fundamento importante da nossa Constituição. Por fim, declarou não caber ao Município editar leis com esse caráter, em usurpação à competência da União.

Desde então, outras leis semelhantes foram declaradas inconstitucionais pelo STF: as dos municípios de Cascavel/PR, Paranaguá/PR, Palmas/TO, Ipatinga/MG, Foz do Iguaçu/PR, Londrina/PR, e do estado de Alagoas. Estão pendentes e pautadas para julgamento no dia 11 de novembro de 2020 ações análogas relativas aos municípios de Blumenau/SC, Tubarão/SC e Santa Cruz de Monte Castelo/PR. E sem previsão de julgamento caso relativo ao município de Petrolina/PE, além de outras ações que buscam promover avanços no âmbito educacional, como, por exemplo, a ADI 5668 para assegurar que o Plano Nacional de Educação seja interpretado de modo a obrigar escolas a coibir discriminações por gênero, por identidade de gênero e por orientação sexual e respeitar as identidades das crianças e adolescentes LGBT.

Apesar da inegável relevância das decisões do STF, é necessário permanecermos alertas com relação à questão. Isso porque tais decisões têm efeitos limitados: não invalidam outras leis que estejam em vigor, mas que não tenham sido judicializadas, nem iniciativas futuras de restrição e censura ao ensino e à aprendizagem que possam vir a prosperar no âmbito municipal, estadual ou mesmo federal. Por suas limitações políticas e institucionais, o tribunal não pode ser visto como instância capaz de, por si só, dar fim a iniciativas de vigilância e censura nas escolas.

As decisões do STF vêm sendo respostas cruciais a iniciativas de vigilância, censura e restrição ao ensino e uso de material didático em escolas, que comprometem o acesso ao conhecimento, a liberdade de aprender e ensinar. Não podem ser tomadas, contudo, como um ponto final às ameaças ao projeto educacional plural, inclusivo e democrático consagrado na Constituição de 1988.

* Gostaríamos de agradecer a toda a equipe da Clínica de Direitos Humanos da UFMG, muito do que será apresentado no presente texto é fruto de discussões e resultado de trabalhos concretos realizados no primeiro semestre de 2020. Para mais informações do programa, ver www.clinicadh.direito.ufmg.br.

** Professora Adjunta de Direitos Humanos da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e coordenadora da Clínica de Direitos Humanos da UFMG. É doutora e mestre em Direito Público pela UERJ e LL.M. pela Yale Law School. E-mail: julianacesarioalvim@ufmg.br

*** Doutoranda em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). Mestre e bacharel em Direito pela UFMG. Orientadora da Clínica de Direitos Humanos da UFMG e pesquisadora do Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBT (Nuh/UFMG). E-mail: jusvidal@gmail.com


Imagem de destaque: Portal STF

 

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