Casca de rio – final (ou não)

Ivane Laurete Perotti

O avô desaparecera como se vidro estilhaçado fosse.

_ Arreluzinu?

_ Arreluzinu… se amisturano cum aquelas pecinha brilhanti. Paricia anju im dia di nunciação.

_ Morreu!?

_ Craro qui não, cumpadi! É u cumeça du causu!

_ Jisuis! I eu pensanu qui táva nus finarmenti!

_ Minh’ vó quasi, quasi dexô esti pranu. Quandu viu …

Ao ver os estilhaços brilhantes, ela teve certeza da “morridura” do marido. Nunca mais! Fora-se ele. Antes dela! Choros e desmaios. Lástimas! Os “acudam” sem resposta. Sem movimentos. Carpideiras reunidas às pressas. Nenhum vivo se “aveviria” depois daquilo. Aquilo! Outra das estranhezas que já engoliam os ribeirinhos. Sobrava assombros. Coisas “abissurdas”. Engrupindo as ideias dos mais fracos. Assaltando o sono dos menos crédulos. Pois que, havia quem falasse muito, em deflagrado estupor. Havia quem nada dissesse: temor maior. Todos assustados! Temerosos! Benzendo o dia e as novidades. Rezando a noite e o que ela trazia.

_ Tudu sustadu! Havera di num sê!?

_ Si…cumpadi, si…si…eli não si afeneceu-si, percisa contá mior isso daí.

_ Saiu mais forti! Lhi aprovu!

_ Intão vai, homi! Vai!

O que para os expectadores de fora e de dentro do povoado foi coisa de segundos, para o avô foram longos minutos. Ainda assim, não teve tempo de se arrepender dos erros da vida e da morte, pois o rio taramelava sem parar.

_ Num intindi! Hum?

_ Tudu muntu rápidu…muntu! Mais di muntu du ladu di fora. Menus di muntu du ladu di drentu…

Na profundidade, o rio corria a seu tempo e velocidade. Aquela que o avô conhecia desde criança.  Água era água. Correnteza seguindo o mesmo fluxo. Direção e constância. Nada mudara. Apenas, ao tentar emergir, o avô bateu na camada vítrea. Sentiu o beijo da morte. Pegajoso. Frio. Desesperado, atendeu à força das águas e entregou-se ao berço eterno. Porém, não era a intenção do rio servir de pretexto para a partida do amigo. Pelo contrário. Queria que ele ouvisse com atenção cada palavra.

_ I issu agora? Riu qui fala, riu qui pensa…riu qui…

_ Qui seca i cuntinua moiadu!

_ Possu?

_ Vai!

A natureza, “naturarmenti”, é vida. Tem ciclos. Pulsa. Chora. Sofre. O mesmo acontecia com o Rio dos Vivos. Vivia! Em plenitude. Alimentava os peixes. As margens. As …

_ Ô, Adelsu, tô ficanu incomodadu cum as vorta! Sem curva, cumpadi!

_ Di qui jeito? As curva…era u casu di maió importânça.

_ Tá! Segui!

Adelson recolheu os cantos dos lábios. Retomou o ar que faltara ao avô. A curva era muito importante. Exatamente onde submergira o avô…

_ Di lá ninguém vortava!

Ninguém! Nem gentes, nem bois, nem pessoas. Nada! Era o coração do rio. O lugar dos segredos das coisas criadas e recriadas. Parecia nascer ali a língua articulada em bolhas. Frases inteiras. Palavras novas. Interjeições. Verbos de nadar! E ele não sabia. Por razões e obras desconhecidas, o corpo permanecia no mesmo lugar. Movente, só a cabeça. No forro. Dentro dela. Informações chegavam em lampejos líquidos. Sinapses molhadas. Eletricidade à prova d’água. Água! Estava ali, ouvindo o melhor e mais objetivo “liquidês”. Nem tão objetivo. Opaco, com sentimentos. “Liquidês” com emoção e nenhum filtro.  Enfim, o avô compreendia, em alta velocidade, as falas do rio. As palavras desconhecidas nadavam ao seu redor. Saíam daquela profundidade sem fundo para o interno de seu cérebro. Uma grande sopa lexical. Lingual.

_ Credu im cruiz! Qui coisa qui num há di si pensá.

_ Há! Há sim! Eli pensô u qui dava prá pensá.

_ Eu num pensaria…essa…essa coisa de lechicar…linguar…inté pareci pau di virá tripa.

_ I num eram as tripa deli?

_ Nu célebru? Ahhh…

_ I tu vai assepará as tripa numa hora dessa, primu?

_ É…tarveiz …

Com as tripas em hemisférios opostos, o avô ouvia. Ouviu. E deu-se em pacto. Corpo e mente. Confiança. Esperanças calçadas em conhecimento. Partilhas. Retornou ao mundo das lástimas carregando o DNA do rio. As instruções genéticas daquelas águas corriam agora pelo núcleo do coração evoluído. Tocado pela realidade das controvérsias. Assim como fora, voltou. Explosão líquida catapultada para fora. Cintilando mais do que o próprio sol, o rio devolveu-se à normalidade. A casca vítrea quebrada em milionésimas partes de raios líquidos. Ofuscantes.

_ Inté arrripio, primu!

_ Di arripiá! Inté us zóiu da arma.

_ Jisus num gosta di arma… arma é trabucu das inhorança…

O silêncio momentâneo dentro da narrativa espelhou o mesmo silêncio que se tomou do fato.  Silêncios que não apagam o tempo da compreensão. Às vezes, apenas alongam-se pela história do contado. Outras vezes, criam vácuos de entendimento estratégico. Mas, infelizmente, alguns silêncios afogam os silenciados. Infelizmente! Não foi o caso dos expectadores do Rio dos Vivos. Vivo, novamente, tornou-se palco de feroz resistência.

_ I é?

_ É!

Os discursos do avô instalaram a voz do rio. E dos ribeirinhos. De toda a natureza. Os interesseiros interessados em tomar para si aquelas águas deram com as fuças no poder de uma comunidade liderada pelo conhecimento. A luta foi pesada. Longa. Muitas vezes aguada por camadas de burocracia e interesseiros de outras plagas. Muitas vezes o avô precisou mergulhar no “liquidês” para…

_ A… prendeu nadá?

_ Nada! Istô usanu uma…figura, cumpadi!

_ I é?

_ É!

Foram anos de muitas empreitadas. Choros, também! Alguns, assustados, migraram para longe. Os interesseiros interessados distribuíam ameaças. Dinheiros. Escreviam leis para dobrar o rio. E o povo. Leis de um só margem. Leis para o diabo ver.

_ Cruiz!

Mas o rio manteve a palavra: nunca mais criou casca. Não traíra a confiança dos ribeirinhos. Se se fizera necessário endurecer a superfície, fizera-o em luta pela vida justa. Digna. Sem divisão em margens de lucro: muito para poucos, nada para muitos.

_ Ô, cumpadi…inté pareci qui tá falanu di pulítica!

_ I num tô? Num tô?

_ Intão, Adersu… ixprica prá nóis pruquê u riu num corri mais aqui?

_ Ah! Cumpadi! Essa é ôtra história. Apercisu di tempu prá cuntá!

_ Vamu passá um cafezinho i tu conta…

_ Contu!


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