Carta dos Oitenta Anos

Nesta semana celebramos os oitenta anos de uma das referências mais importantes do pensamento educacional brasileiro. É impossível pensar a educação no Brasil, a formação de professores, a pesquisa participante, a cultura e a religiosidade popular, a educação popular no campo e na cidade sem falar de Carlos Rodrigues Brandão. Sua produção acadêmica é atravessada por sua poesia fina e envolvente e sua militância permanente na construção de um pais mais justo. Somos muitos e muitas que neste momento queremos lhe-dizer: Gratidão!!!

Com a devida autorização compartilho com os leitores do Jornal Pensar a Educação em Pauta essa carta-depoimento daquele que ao longo da vida muito nos ensinou e continua a nos inspirar, sustentando nossa esperança num outro mundo possível.

Luiz Rena

CARTA DOS OITENTA ANOS
Com livro de poesia em anexo!

 O que lembro tenho.
Venho vindo de velhas alegrias.
(João Guimarães Rosa)

Uma vez Rubem Alves me contou que quando ele fez 80 anos, um amigo disse a ele, entre confidente e gozador: “Eh, Rubem! Que tristeza chegar nos 80 anos!”  Ao que Rubem respondeu: “Nada disso! Tristeza é não chegar! ”

Pois hoje, 14 de abril de 2020 eu acabo de chegar a esta felicidade! Pois eu nasci em Copacabana, diante do mar imenso, no Rio de Janeiro, no dia 14 de abril de 1940.

É quase um milagre que eu esteja vivo e inteiro. Sim, pois cheguei aqui depois de três acidentes muito graves: um mergulhando em um rio em Itatiaia (1957), outro dirigindo um “fusca” em Goiás (1971), e outro viajando de ônibus para fazer uma palestra em Ituiutaba, Minas Gerais (2003) –  o mais “mortal” deles, e do qual nem os médicos do Hospital da Universidade de Uberlândia, e nem eu mesmo, sabemos até hoje como saí vivo. E é um milagre maior que eu esteja vivo e inteiro, depois de dois momentos de extremo perigo em escaladas e entre paredões de montanhas do Rio de Janeiro (1960 e 1961) quando eu fui um escalador. Um deles na Pedra da Gávea, e o outro no Paredão Morumbi. Dois momentos insensatos que me arrepiam até hoje, quando eu os lembro. E afinal ainda vivo, depois de uma cirurgia no coração em 2004, e de outros perigos menores, somados a outras pequenas cirurgias aqui e ali.

Mas esta não é uma mensagem de memórias de “quase mortes”. É uma carta de reconhecimento e de gratidão.

Se Violeta Parra teve motivos para cantar “Gracias a la Vida, que me ha dado tanto…”  imagem eu! Imaginem!

E é a Vida, a Deus, às Estrelas, às montanhas e ao Universo a quem dou graças, imaginando que elas e eles talvez sejam um ser só, a quem damos diferentes nome e diversas imagens imaginadas.

E como não daria nem em 80 páginas para agradecer a todas, a todos e a tudo, que eu diga e escreva: “Gratidão”, lembrando o nome de algumas pessoas. E que ao lembrá-las, seja em nome de todas as outras!

Assim, se eu colocar em uma ponta de uma linha imaginária a minha bisavó gaúcha, Corina, com quem convivi até meus 8 anos, a avó de minha mãe, Solange, e se colocar na outra ponta Pablo, meu neto mais moço, lembro entre essas pessoas próximas todas as mulheres queridas e os homens (idem) que de um modo ou de outro são “sangue de meu sangue”. E alma de minha alma também.

E se eu colocar na ponta de uma outra linha a minha primeira professorinha lá do Colégio Paulista (mas na beira do mar, em Copacabana) e mais o “Chefe Jacques”, de minha tropa de escoteiros, quando eu era ainda menino de 11 anos, devo colocar na outra ponta o  Padre Antonius Benko e os professores Roberto Cardoso de Oliveira e José de Souza Martins, estarei lembrando todos  e todas as mestras  que da escola à universidade –  e fora dela – me ensinaram  e me formaram ao longo dos anos,  para que eu depois fosse, em ponto menor,  um “mestre de outros mestres”. Vivo a alegria de contar hoje seis gerações de estudantes que dialogaram comigo, entre um dia em 1967 e os dias de ago ra.

Se colocar em uma ponta de outra linha  pessoas como Beatriz Bebiano Costa, Alda Maria Borges, Rubem Alves, Paulo Freire, Pedro Casaldáliga, José Inácio e Marcos Arruda, companheiras e companheiros de ações de vocação insurgente e  popular, e de sonhos e de buscas “de um outro mundo possível”, deverei colocar na outra ponta dela a pluralidade de jovens, moças e rapazes que aqui no Brasil, e por onde eu ando pela América Latina,  que  seguem “de pé e de frente”, levando adiante, em tempos outra vez tão sombrios, as nossas mesmas bandeiras,  as nossas mesmas ações de quem semeia, mesmo sabendo que talvez não vá colher . E cant ando os mesmos e outros cantos, e ora dizendo, ora bradando as mesmas e outras novas palavras de justiça, de liberdade, de uma generosa vida solidária. E, mais do que tudo… de esperança.

Se eu colocar na ponta de uma outra linha o “velho Júlio Julião”, um negro, semeador de milho e feijão, e tropeiro de burros entre as trilhas do Planalto do Itatiaia, dos meus tempos de escalador de montanhas, devo na outra  ponta colocar “Mestre Messias” em Goiás, e Sebastião Norata, no Sul de Minas –   foliões de Santos Reis –  e mais “Mestre Antônio Telles”, violeiro e guia de Dança de São Gonçalo, em Piracaia, e também as quantas pessoas do campo;  gerações  de “gentes da roca” e da “luta pela terra”. Mulheres e homens de antes e de agora, que sem nenhum dos títulos que a universidade m e deu, f oram e seguem sendo os “sábios da Vida” junto a quem aprendi o melhor do que preciso saber para saber como viver e como agir.

Em uma última dessas “linhas de gratidão”, quero colocar em uma ponta as “pessoas dos velhos tempos”, e na outra ponta as pessoas “de agora”. Uma gente que sonha unida, e convive e comparte a vida entre as mesmas buscas, na mesma fé, no mesmo amor e na mesma esperança. Essas seriam as pessoas mais plurais e também as mais singulares.  E o nome mais amplo delas é também o mais pessoal. Pois eu desejo que elas se chamem: “você!”

Você, amiga ou amigo de perto e de longe, e que de longe ou de perto me abraça hoje, neste 14 de abril.

E você, a quem eu “espero com esperança” que algum dia, perto ou longe, eu possa abraçar com toda a força de uma fraterna presença,  e com a de uma ternura maior ainda.

Na idade a que eu chego não sei se ainda vale dizer: “sigo adiante”.

Talvez seja mais sábio repetir com Bashô –  monge zen, peregrino e grande poeta do haicai do Japão do passado:

“Sigo através! ”

Receba um abraço fraterno do

Carlos Brandão


Imagem de destaque: Dương Trần Quốc/Unsplash

 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *