Caminhos de uma experiência docente

Paula Dias Bevilacqua*

Escrevo esse texto poucos dias depois do dia 15 de outubro, quando se comemora no Brasil, o Dia do Professor (e da Professora – parêntese para destacar que embora a gramática generalize, somos nós, mulheres, a exercer em maior número essa profissão, a exceção do ensino superior). Depois do 8 de março (Dia Internacional das Mulheres) essa é talvez a data que mais recebo felicitações e mensagens. Pululam frases de personagens famosos, Paulo Freire (de longe o mais citado), Florestan Fernandes, Cora Coralina, Rubem Alves; aparecem também personagens fictícias (adoro!), mas igualmente famosas com reflexões irônicas, divertidas e sábias: Mafalda, Calvin & Haroldo, Snoopy & Charlie Brown e outros. Esse ano, apesar de 2020, não foi diferente, esses personagens povoaram as redes sociais. Em geral as mensagens exaltam esse outro personagem, o/a professor/a, comentam sobre o dom, a dedicação, a persistência de empreender essa profissão, que abre portas, corações e mentes para a construção de uma sociedade melhor. Confesso que sempre me senti em dívida com essas mensagens, questionando se efetivamente cumpri (e cumpro) esses requisitos tão nobres e tão sublinhados como importantes no fazer da docência.

Iniciei minha experiência docente bem jovem. Como estudante de graduação em uma universidade federal, comecei a dar aulas em cursinhos pré-vestibulares. Foi esse o palco onde pude dar meus primeiros passos como professora – verdadeiro palco, já que algumas turmas contavam com centenas de estudantes e as aulas se transformavam em uma performance para manter a atenção. Ensino massificado pensarão alguns/as. De fato, não se tinha muita chance para experimentações didático-pedagógicas, era um ensino conteudista e que visava exclusivamente o vestibular. Mas foi uma experiência de grande potência para minha formação, contato com professores/as de diferentes origens e formações (quase todos estudantes de graduação como eu, ou ex-estudantes que desistiram da profissão em que se formaram para seguir como professores/as), também uma variedade de estudantes – origens, classe social e raça-etnia, apesar de cursos privados, essa diversidade era possível pelas bolsas de estudos ofertadas e também a composição de turmas noturnas, repletas de trabalhadoras e trabalhadores que custeavam seus próprios estudos. As turmas, por vezes vastíssimas, desafiavam sistematicamente minha insegurança intelectual e pessoal, já que não tinha nem formação em docência e várias turmas eram compostas por pessoas com idade muito superior a minha, por exemplo.

Já como docente de um curso considerado de ‘elite’, em uma universidade federal, as salas de aulas se tornaram menos ecléticas, as turmas embranqueceram e se compunham quase que na totalidade por jovens de classe média– reflexo do reconhecido acesso desigual ao ensino público superior no Brasil. Novos desafios se impunham agora ao ministrar conteúdos para a formação profissional em um curso da área da saúde. Se antes as inseguranças eram compensadas pelo desejo e interesse em aprender dos estudantes, na academia tive que lidar com a hegemonia dos conteúdos técnicos, a valorização das habilidades práticas e a desatenção em formar cidadãos e cidadãs, não apenas profissionais a repetir fazeres e aplicar receitas.

A experiência anterior e a que se apresentava agora foram pavimentando o caminho de minha formação como professora, delineado, por vezes, a duras penas. A sala de aula nem sempre foi um lugar confortável e de acolhimento, onde encontros significativos aconteceriam, ideias seriam semeadas, onde o artesanato de almas e personalidades se faria, como prometem muitas das mensagens no Dia dos Professores/as. A sala de aula também oprime, julga e agride. Muito se fala dessas condições, experienciadas pelos estudantes, oriundas das relações tradicionalmente verticalizadas entre docente e discente. Mas professoras também passam, por exemplo, por assédio sexual e moral nas salas de aulas. Perguntas que testam sua capacidade intelectual por ser mulher, olhares que perscrutam seu corpo, exposto, comentários machistas e sexistas… são também as vivências de mulheres professoras.

Por outro lado, posso testemunhar que existe um lugar onde o encontro potente acontece, onde é possível, como diz Suely Rolnik, sermos criativos e não apenas reativos. Na minha experiência docente na universidade, esse lugar esteve na extensão. Na extensão que se realiza de forma dialógica, interdisciplinar e interprofissional e que se articula ao ensino e à pesquisa. Nesse espaço, pude vivenciar a satisfação da práxis docente como construção de saberes, luta contra a exclusão e as desigualdades sociais e a defesa da democracia e da diversidade. Foram anos de muito crescimento pessoal e coletivo, trocas verdadeiras e sensíveis, aprendizados múltiplos e a certeza de que me encontrava como professora, contribuiu, assim, para apaziguar receios e dúvidas mencionados no início do texto. Infelizmente, esse espaço com tamanho significado pode estar potencialmente ameaçado.

* Pesquisadora Fiocruz-Minas

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Este texto integra uma parceria entre o Pensar a Educação, Pensar o Brasil 1822/2022 e o Instituto René Rachou (Fiocruz) para promover ações e reflexões em torno da Educação para a Saúde.


Imagem de destaque: Karolina Grabowska / Pixabay

 

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