Caminhos cruzados

Wojciech Andrzej Kulesza

A íntima associação entre religião e educação é constantemente reiterada na sociedade brasileira, tanto por educadores como por religiosos. Historicamente, o regime de padroado, vigente tanto na Colônia como no Império, reservou a educação aos cuidados da Igreja Católica, marcando profundamente nosso ensino. Mesmo com a separação republicana entre a Igreja e o Estado em 1889, os religiosos continuaram a se encarregar de boa parte de nosso ensino e as iniciativas seculares normalmente adotavam a mesma pedagogia das escolas religiosas. As escolas republicanas passaram a ser representadas como “templos de civilização” e as professoras como “sacerdotisas”. O ensino do catecismo, não importa se na igreja ou na escola, constitui até hoje uma verdadeira iniciação ao ensino para muitas crianças e professoras. E é claro que a história sagrada veiculada nos catecismos, como toda história, pressupõe determinada visão de mundo que é, afinal, o que verdadeiramente se está ensinando.

Com o fim da exclusividade assegurada à religião católica no país, surgiram inúmeras propostas educativas associadas às respectivas denominações religiosas: educação protestante, judaica, metodista, espírita, etc. A legislação educacional atual garante o ensino religioso como disciplina normal do ensino fundamental, embora de matrícula facultativa, de acordo com as preferências manifestadas pelos alunos ou por seus responsáveis. Conquanto esteja prevista a possibilidade de se estabelecer um programa de ensino interconfessional, em princípio, cada escola pode oferecer simultaneamente distintos programas de ensino confessional, conforme as opções apresentadas pela comunidade escolar. Desta forma haveria uma desejável continuidade entre a formação religiosa da criança na família e o ensino religioso escolar.

Por essa disposição legal, a laicidade do ensino público fica afiançada, não só porque cabe aos sistemas de ensino definir as regras para a seleção dos professores, mas também porque estes serão remunerados pelo erário público, e não pela denominação religiosa à qual porventura pertençam. Amparados por esta legislação, surgiram nos últimos anos muitas licenciaturas em “Ciência das Religiões”, exatamente para ter acesso ao mercado de trabalho aberto pelo ensino religioso. Em busca de sua autonomia da Teologia e de seu reconhecimento acadêmico pelas Ciências Humanas e Sociais, essa nova área tem utilizado essa função social para se afirmar nos meios universitários. Este episódio recente de nossa educação é expressivo para a história das disciplinas escolares por revelar os mecanismos, de forma nenhuma apenas pedagógicos, que fazem aparecer uma nova disciplina no currículo escolar.

Naturalmente, essa proximidade entre educação e religião tem produzido notáveis realizações, facilmente perceptíveis quando a mesma pessoa, como São Tomás de Aquino ou Pestalozzi, atua nas duas áreas. A monumental RatioStudiorum dos jesuítas e a Opera DidacticaOmnia de Comenius estão aí para atestar a extensão e proficuidadeda convivência entre teologia e pedagogia na cultura ocidental. Embora na teologia o conhecimento esteja fundamentalmente baseado na fé e a pedagogia procure fundamentar-se nas ciências, há muitas brechas e lacunas na interface entre as duas que permitem o trânsito de uma para outra. Em 1929, o militante católico Mário Casasanta defendeu a reforma escolanovista de ensino, então hostilizada pela cúpula da Igreja, num discurso para as normalistas do Colégio Sagrado Coração de Jesus, mostrando que o “próprio Cristo, antes de todos, defendeu e aplicou pontos de vista e ideias pedagógicas da escola renovada”. Ademais, não se pode esquecer que o grande Paulo Freire foi um dos inspiradores seminais da Teologia da Libertação.

Todavia, se é possível conceber uma escola do ensino fundamental na qual o ensino religioso é ministrado para turmas de alunos com a mesma orientação religiosa, cada turma seguindo um programa pautado pela sua confissão, é inimaginável a divisão dos alunos em turmas aristotélicas, newtonianas e einsteinianas, ou, darwinistas e vitalistas, ou, marxistas, durkheimistas e weberianas, flogistonistas ou oxigenistas, ou piagetianas, rogerianas e skinerianas, ou, cubistas e expressionistas, e por aí vai. Seria um absurdo, porque todas essas correntes são partes integrantes das diversas disciplinas do currículo, compondo organicamente seus programas de ensino. São as divergências que fazem avançar o conhecimento e é por isso que é absolutamente necessário registrar sua existência na exposição de qualquer matéria de ensino. O ensino de uma ciência feito sem apontar seus problemas, seus desafios teóricos ou experimentais, é um ensino que nega o próprio método científico.

E aí que está a diferença. Podemos discutir nossas crenças autênticas sem abalar nossa fé, mas não podemos fazer ciência sem alterarverdadeiramente nosso conhecimento. A convivência pacífica entre religião e educação exige em primeiro lugar que não se privilegie uma ou outra como vias diversas em busca do saber, mas pressupõe também que haja uma diferença essencial entre ambas no modo de percorrer esses caminhos. A supressão dessa diferença levaria inexoravelmente à redução dessas vias ao caminho único do totalitarismo, do fundamentalismo, da ortodoxia, à negação enfim de tudo aquilo que almejamos como seres humanos, a começar da liberdade.


Imagem de destaque: @lubmyr

https://www.zp-pdl.com https://zp-pdl.com/get-quick-online-payday-loan-now.php http://www.otc-certified-store.com/animal-health-medicine-europe.html

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *