Em Os Bruzundangas, uma potente sátira de Lima Barreto sobre o Brasil, o autor desvela facetas perversas do país por meio de Bruzundangas, uma espécie de reino do nepotismo, da corrupção, da mediocridade, da exploração, do racismo, do autoritarismo. Diriam uns, o Brasil de hoje, alegando atualidade ao livro que foi publicado postumamente em 1922, como grande parte da obra do autor. Será?
Em contextos políticos tão acirrados, é um exercício vital olhar para o retrovisor antes de vociferar discursos desesperançosos e distópicos, muito convenientes para candidatos histriônicos e oportunistas. De quando a obra foi escrita, no início do século passado, até os dias de hoje, o Brasil avançou como democracia e já não somos, em alguns aspectos, tão parecidos com Bruzundangas. E uma das questões que estão postas, a poucos dias do desfecho da eleição presidencial no Brasil, é se nos aproximaremos ou continuaremos a nos afastar da alegoria barretiana.
É disso que se trata o movimento #elenão liderado por mulheres brasileiras. Milhares de nós foram às ruas em duplas, trios, grupos, em parceria com nossos amigos, filhos, companheiros, pais, avôs, irmãos, primos para afirmar bandeiras feministas em resposta à misoginia e a truculência do candidato Jair Bolsonaro. Não foram “apenas” pelos direitos conquistados a duríssimas penas pelas mulheres, elas (e eu também) protagonizaram a maior manifestação pública contra um candidato.
Reafirmaram a importância do voto das mulheres, em uma eleição majoritariamente feminina (quase 53% do eleitorado). Mas, também levantaram bandeiras por direitos assegurados na balzaquiana Constituição Federal e leis mais recentes, como o Estatuto da Criança e do Adolescente, reconhecido internacionalmente, mas ameaçado de ir para “latrina” pelo candidato de ultradireita.
É bem verdade que, na contramão de alguns avanços, vivemos recentemente um golpe parlamentar, assistimos a aplicação de punições de forma seletiva por um judiciário que age de forma enviesada, observamos impotentes racistas impunes que vociferam suas imbecilidades em redes sociais e a homofóbicos em cargos públicos; pior, temos uma alta taxa de feminicídio (a cada dia, 13 mulheres são assassinadas no Brasil, 5º país em morte violenta de mulheres no mundo), temos também desapropriação de terras indígenas e commodities vendidas a preço de banana por empresas estrangeiras, que também estão se refastelando em nossas reservas de petróleo.
MAS, podemos nos posicionar sobre todas essas coisas, podemos ocupar os espaços de embate, podemos pesquisar e agir sobre elas. Pelo menos por enquanto. Temos um candidato que afirma que tratará ativismo e movimento social como atos de terrorismo.
Infelizmente, temos uma longa lista de problemas sociais e econômicos, capaz de garantir muitos insumos para que Lima Barreto, se vivo, cogitasse uma edição revisada de Bruzundangas. Mas, a nova edição fictícia não poderia ignorar as lutas dos movimentos sociais, as conquistas legais, o espaço duramente ocupado pela população negra nas universidades (ainda ínfimo), as eleições diretas, o fim da ditadura, entre outras. E as mulheres, no dia 29 de setembro passado, lembraram dessas conquistas, gritaram por respeito, por garantia de direitos para todos, por equidade, pelo não ao retrocesso.
Já não estamos mais no início do século passado, ainda que tenhamos nos bairros populares dos grandes centros urbanos, nas zonas rurais, em comunidades indígenas e quilombolas, mulheres e homens cis e trans sendo assassinados ou morrendo por não acessarem seus direitos. E é por querer reverter situações como estas que o movimento #elenão, responsável pela maior manifestação protagonizada por mulheres no Brasil, revela a força do voto das mulheres nas eleições de 2018.
Que doce ironia será uma derrocada de Bolsonaro pelo voto feminino. Não devemos perder essa oportunidade de desbancar um candidato que nos considera pessoas de segunda categoria, que quer armar nossas crianças, nos pagar salários inferiores aos dos homens, atestar o período da gestação como um momento de baixa produtividade ou nos curar por sermos lésbicas ou trans.
Quando conseguirmos isto, teremos provado que ao #EleNão cabe apenas candidatar-se à presidência da República dos Estados Unidos da Bruzundangas.
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