As mulheres indígenas em marcha: educando-nos para os direitos humanos

José Heleno Ferreira

Um dos últimos textos escritos por Paulo Freire, poucos dias antes de sua morte, foi “Do assassinato de Galdino Jesus dos Santos”. Galdino foi queimado por cinco adolescentes em Brasília, no dia 20 de abril de 1997. Seu texto manifesta a indignação diante do fato de os adolescentes terem dito à polícia que estavam brincando e a estranheza quanto a esse jeito de brincar: “brincar de matar”. E acrescenta: “Tocaram fogo no corpo do índio como quem queima uma inutilidade. Um trapo imprestável. Para sua crueldade e seu gosto de morte, o índio não era um tu ou um ele. Era aquilo, aquela coisa ali. Uma espécie de sombra inferior no mundo. Inferior e incômoda, incômoda e ofensiva”.

Tal como os colonizadores portugueses que colocaram em questão a humanidade dos povos indígenas, os adolescentes em Brasília, há 24 anos atrás, julgavam-se no direito de brincar de colocar fogo num corpo indígena. Infelizmente, este não é um fato isolado em nossa história. Há mais de cinco séculos os povos indígenas vêm enfrentando todos os tipos de violência, da aculturação à escravização, da negação de suas línguas e etnicidade ao genocídio.

Mas durante este longo processo de tentativa de extermínio, a resistência dos povos indígenas se sobrepôs às forças do capital. Exatamente por isso afirmamos aqui, que, para além de todos saberes, de todas as riquezas que os povos originários nos legaram, para além tudo que compartilharam e compartilham conosco, a capacidade de organização e a capacidade de resistir são os principais ensinamentos destes povos que teimam em viver, apesar de todo um sistema opressor que busca sua morte.

Nos anos 1980, durante o processo de elaboração da atual Constituição Federal, os povos indígenas obtiveram uma série de conquistas, sendo, a mais importante delas, o direito originário às terras que tradicionalmente ocupam. Além disso, o direito a uma educação bilíngue, o direito à saúde indígena, o reconhecimento da etnicidade de diversos povos até então silenciados pela violência da aculturação foram conquistas que os povos originários alcançaram. Conquistas e não benesses, é preciso que se diga o óbvio. Conquistas construídas a partir da luta de várias lideranças indígenas naquele momento histórico, tais como Ailton Krenak e muitos outros e outras.

Nestes tempos tão difíceis que se abateram sobre a nação brasileira, em que mulheres, negras e negros, trabalhadores e trabalhadoras vêm tendo seus direitos negados, as conquistas dos povos indígenas também estão sob ameaça constante. Os interesses do agronegócio, dos garimpeiros e dos madeireiros buscam se sobrepor ao direito à terra e à vida de diversos povos. A tentativa de estabelecer o ano de 1988 como marco temporal para a demarcação de terras indígenas – negando qualquer outro avanço a partir de então – é, no momento atual, a principal manifestação da sanha destruidora do capital sobre os povos indígenas – bem como sobre todos os grupos em condição de vulnerabilidade social.

Mas os povos indígenas continuam resistindo e, neste processo, continuam nos educando. Educando-nos quanto ao significado mais profundo do que seja “direitos humanos”, ensinando-nos que o respeito à Terra e à vida que nela se faz presente é condição para a garantia da dignidade humana, anunciando o bem viver a partir das relações comunitárias e da negação da lógica do acúmulo de bens materiais que orienta a sociedade capitalista.

No centenário de Paulo Freire, relembramos seu texto que denuncia o assassinato de Galdino Pataxó. Mas trazemos também à tona a resistência dos povos originários. Neste mês de setembro, mais de cinco mil mulheres indígenas de 172 diferentes povos realizaram a II Marcha Nacional das Mulheres Indígenas, em Brasília (do dia 07 a 11 de setembro). O tema da marcha foi “Mulheres originárias: reflorestando mentes para a cura da Terra”. As marchas – dos trabalhadores e trabalhadoras sem terra, de todas e todos os despossuídos do mundo – foram louvadas por Paulo Freire nos últimos textos que ele nos deixou.

Por isso, queremos celebrar aqui a II Marcha Nacional das Mulheres Indígenas, a memória de Paulo Freire e a luta incansável em defesa dos direitos humanos. E assim, com as mulheres indígenas, que denunciam em sua marcha a violência de gênero e todas as violências que os povos originários vêm sofrendo, educamo-nos para os direitos humanos.

 

Para saber mais
FREIRE, Paulo. Pedagogia da indignação: cartas pedagógicas e outros escritos. São Paulo: Editora UNESP, 2000.


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