As crianças como cidadãs de direito [de viver] ou… Sobre como se matam crianças – exclusivo

Sandro Santos

Joaquim Ramos

Chega estampado, manchete, retrato
Com venda nos olhos, legenda e as iniciais
Eu não entendo essa gente, seu moço
Fazendo alvoroço demais (HOLANDA, 1981)

Quando Chico Buarque de Hollanda lançou a música “O Meu Guri”,em 1981, a violência já tomava conta dos morros(não apenas do Rio de Janeiro, mas de todo o país) e crianças eram lançadas ao mundo do crime de maneira brutal, como atesta a própria canção. O eu-lírico da letra é a mãe do guri. Ela quem irá narrar a triste sina do filho: nascimento, vida e morte (precoce). Pobres e moradores do morro, há uma cumplicidade entre ambos e a criança torna-se a principal protagonista de uma história trágica. Assim, em sucessivas repetições de “olha aí, é meu guri”, essa mãe relata os fatos que culminam na tragédia final. O poeta não explicita como a criança foi morta, nem quem a matou e muito menos os desdobramentos relacionados a esse assassinato. Chico Buarque deixa as inferências por conta de quem escuta a canção. O que ele afirma, no entanto, é que a mãe já sabia desde o início que o guri um dia chegaria lá. Este “lá” significa o fim trágico ou a ascensão social por vias ilícitas? Também não sabemos.

De lá para cá, mais de três décadas separam aquela história das que presenciamos hoje. A violência e os abusos contra as criançasassombram e assustam a nossa sociedade, de maneira tal que, por vezes, é difícil acreditar em alguns episódios trágicos envolvendo meninos e meninas. E veja que durante esse interstício houve um avanço significativo da legislação brasileira no sentido de resguardar os direitos da criança e do adolescente (o que vem sendo construído paulatinamente desde a Constituição Federal de 1988 e todas as leis dela procedentes). Atualmente, de maneira corriqueira, nos damos conta de que atos “selvagens” são cometidos contra ascrianças e sua infância. Por não se tratar apenas de violência simbólica, tanta maldade coloca-nos à beira da barbárie.É possível, dentro desse cenário, elencar alguns assassinatos que colocaram a sociedade brasileira para refletir sobre o que estamos fazendo dee com as nossas crianças. Recentemente, no dia 03 de março de 2015, ficamos estarrecidos com a morte trágica de Eduardo de Jesus, 10 anos de idade, no Complexo do Alemão, na zona norte do Rio de Janeiro. Atingido por um tiro de fuzil disparado por um policial militar, Eduardo foi a quarta vítima de tiroteio na região em menos de 24 horas. Segundo testemunhas, a criança foi morta durante troca de tiros entre policiais e bandidos.

Vale lembrar que em nota, a presidenta Dilma Rousseff lamentou a morte de Eduardo e expressou solidariedade e sentimentos de respeito à mãe da criança, Terezinha Maria de Jesus. Nas palavras de Dilma: “espero que as circunstâncias dessa morte sejam esclarecidas e os responsáveis, julgados e punidos”.

Entre um acontecimento e outro, coloca-se em evidência formas distintas de assassinar crianças. Ainda que a história contada por Chico Buarque (1981) esteja no plano da ficção, o guri ali retratado estampou e continua estampando – com vendas nos olhos, legendas e iniciais – muitas manchetes de jornais. O fato de crianças serem assassinadas tão frequentemente pode até não nos tocar (a todos) de igual modo e pode ser que muitas pessoas nem se importem com isso e que nem registros apareçam nos jornais de grande circulação, no entanto, vidascontinuam sendo ceifadas.É fácil citar outros assassinatos de crianças que ganharam repercussão na mídia: ficamos atentos e vigilantes quanto aos desdobramentos da morte da menina Isabella Oliveira Nardone, de 05 anos de idade, jogada da janela do prédio em que morava em 2008; ou o caso de Joaquim Pontes Marques, de 03 anos de idade, encontrado morto no rio Pardo, em Barretos, em novembro de 2013; ou Bernardo Uglioni Boldrini, de 11 anos de idade, encontrado enterrado às margens de um rio, no município gaúcho de Três passos. Exemplos de maldades não faltam. Os mais céticos poderão dizer, “mas tratam-se de exceções”. Sim, são exceções de casos extremos que não podem ser esquecidas. Esses são exemplos que nos convocam a intensificar cada vez mais a vigilância e o cuidado em relação às nossas crianças. Seacontecimentos assim não servirem para sensibilizar e mobilizar as pessoas, o caos se instaura no meio de nós. Se fatos dessa natureza forem banalizados, urge rever o nível de demência a que chegou a nossa sociedade. Daí, sem dúvida, é preciso convocá-la para rever seus princípios morais.

No caso do menino Eduardo, a comunidade do Complexo do Alemão foi para as ruas e houve mais confronto com a polícia. Das janelas, lenços brancos esvoaçavam como forma de protesto e pedidos de proteção e paz. Não a proteção da polícia que desprotege e mata, mas um pedido de socorro para aquela comunidade – como tantas outras – entregue às brutalidades humanas. Efetivamente, ao assassinar pessoas – incluindo crianças – não é possível afirmar que haja uma política encarregada de pacificar os espaços. Ao contrário, pois ao se colocar a serviço do aniquilamento de vidas de pessoas inocentes, há uma disfunção do aparato policial. De que paz estamos falando? Qual o valor que se têm pela vida? Algumas vidas, como sabemos, têm muito menos valor, como nos ensina Judith Butler.

Afinal, qual o papel do aparato policial nos momentos de conflitos? Com isso, não estamos levantando a bandeira do fim da segurança pública, queremos demonstrar como esta instituição também é alvo das contradições da sociedade contemporânea, poiso policial que assassina crianças no morro (e fora dele) é, muitas vezes, o mesmo que protege os portões das escolas nos momentos de entrada e saída de pessoas. Escola que, cada vez mais, tem sido considerada espaço não só de educação, mas território de sociabilidade – em função do achatamento de diversos outros espaços de encontros e relações sociais, especialmente os das crianças. 

Também nas redes sociais, a morte de Eduardo teve uma grande repercussão. Diferentemente do que ocorria há três décadas, quando acontecimentos e fatos assim contavam em grande medida com os jornais impressos e televisivos para serem divulgados, essas mídias cumpriram bem o papel de denúncia. Inclusive, associando tal fato à redução da maioridade penal que alguns setores mais retrógados da sociedade querem enfiar a qualquer custo “goela abaixo” na população brasileira.

No plano discursivo, a retórica aponta a criança como sujeito de direitos e a própria constituição brasileira, em seu artigo 227, tenta assegurar a integridade física e moral da mesma ao afirmar que “[é] dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.

Na realidade, não é isso que presenciamos. Diante desses fatos apresentados, entendemos que a contemporaneidade se apresenta, na contramão do entendimento da criança como sujeito de direitos e efetivasaçõesque agridem, desumanizam e transformam algumas crianças em escória ou em cadáveres precoces.

A educação e a escola figuram também nesse lócus de conturbação da ordem pública. Representam, em muitos casos – especialmente para as crianças das classes populares – as alternativas que possibilitam-nasse desvencilharem da violência e do crime. É lá, na escola, que muitas crianças se sentem mais protegidas da violência existente em seu entorno, inclusive da violência cometida contra ela pela própria família.Mesmo envolta eminfindáveis problemas (inclusive de segurança pública, pois não esquecemos o massacre de crianças na escola de Realengo, Rio de Janeiro), a escola ainda representa um espaço de segurança e de proteção.

Nesse cenário de luta desigual em que normalmente a parte mais fragilizada é sempre a criança e, ainda que não seja o seu papel, a escola pode [ou não] fazer a diferença e intervir em favor da vida. Assim, o pensamento, sempre atual, de Hannah Arendt nos ajuda a compreender que: “[a] educação é, também onde decidimos se amamos as nossas crianças o bastante para não expulsá-las de nosso mundo e abandoná-las a seus próprios recursos, e tampouco arrancar de suas mãos a oportunidade de empreender alguma coisa nova e imprevista para nós, preparando-as em vez disso com antecedência para a tarefa de renovar um mundo comum[1]”.

Em Notícia de Jornal, outra célebre canção de Chico Buarque afirma que “a dor da gente não sai no jornal”. Alguns acontecimentos podem nem servirem para ilustrar as páginas dos jornais – nem todas as mortes e assassinatos de crianças são noticiadas – mas qualquer pessoa, com o mínimo de sensibilidade, consegue mensurar a dor sentida por uma mãe ao ter que enterrar um filho assassinado de maneira tão brutal e injusta. Assim, a voz da Presidenta Dilma – ao dirigir-se à mãe da criança assassinada – precisa reverberar junto à nossa própria voz, para exigir que as crianças sejam respeitadas e protegidas. Ou do contrário, a tristeza e a dor irão continuar fazendo morada entre nós, ratificando, assim, o que disseEduardo Galeano:“quando crianças, somos poetas. Depois, o mundo se encarrega de apequenar a nossa alma”.

[1]ARENDT, H. Entre o passado e o futuro. Trad. Mauro W. Barbosa. 6 ed. São Paulo: Perspectiva, 2007.

 

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