As iniciativas partem dos olhos. Morada da poesia.
_ Professora, posso falar?
_ Com certeza. Fale!
_ Quero dizer de mim.
Um demorado suspiro tomou assento atrás do display. A professora, tão preparada nas competências docentes, fechou os olhos por breves segundos. Passou-lhe pela alma da memória que as nebulosidades ferem os sentidos. Se Hanna Arendt, ao escrever Homens em Tempos Sombrios,estilhaçara as fronteiras entre arte e realidade, dizer de si, em tempos tão densos, fustigaos sujeitos de coragem. Um açoite de reflexões. Tão necessário quanto dolorido.
_ Professora, preciso dizer de mim. Não sou mais o mesmo. Entende?Levanto para estar aqui todas as manhãs. Saio incompleto dessa sala. As paredes me sufocam. Preciso das janelas de seus olhos. Nunca lhe disse, não estranhe, mas chegar à escola e encontrar você era um parêntese de alegria. Tudo bem se as minhas dores chegavam comigo. Você sabia do que eu precisava. Bastava um olá, um bom-dia, ou até o “entre” após o sinal. Está difícil. Você faz falta em minha vida.
O silêncio da professora calou a rede virtual. Emoções pesam. Acontecem.Regam jardins e rochas. Ocupam lugares. Ligam eternidades. Desfocam o sol. Desaguam grotões. As emoções são espelhos d’alma. Às vezes, atrelam sentimentos à roda da existência. Outras vezes, partem sem deixar endereço. Assim é.
_ Professora, quero saber de ti. Ainda é a mesma? Nos espera todas as manhãs? Como sai dasala? Queria saber se está bem.Como é estar aí? Seus olhos têm janelas, preciso delas. Você pensa na escola? Sente faltada nossa chegada? Queria saber do que você precisa. Bom dia, professora. Entre, o sinal mudou. Chame, professora. Pode chamar agente. Está difícil.
A web, depósito de informações, rompeu o lacre da indiferença. De um lado, a professora chorava o grandioso silêncio. Do outro, os alunos, contagiados pelo desabafo, pediram a vez:
_ Profa!… sinto a sua falta…
_ Eu também!… saudade.
_ Gostamos de você.
_ Pode fazer todas as provas de Química de uma vez. Eu faço tudo!De rocha!
_ Professora, sonho com as aulas.
_ E eu, sonho que chego na sala, atrasado e…de boa.Tô dentro!
_ Difícil, profe! A gente tá ligado …essa pandemia é…é…
_ Um camelo manco.
_ Com carga!
_ No deserto… sozinho.
Os alunos percebem que a webcamos encara. O último slide paira entre eles e a professora. Então, um a um, conectados pelo verbo dos sentimentos, ligam as próprias câmeras e se deixam ver. Uma explosão de rostos adolescentes irrompe a vastidão de pixels. Olhos carregados de chuvosa saudade tentam sorrir para o outro lado da sala aberta. Colorem-se as telas dos computadores e celulares pelo desejo do dizer dos sentimentos e das emoções. Saudosos, mas conscientes das fronteiras sanitárias, os alunos derramam a ausência física em considerações emocionantes.
_ Psora…você também sente falta da gente?
O outro lado, que não era outro, nem era lado, molhou a música. Lágrimas enroscaram-se em dó, em mi…. líquidos, os bemóis dobraram-se em humilde graça. A clave de sol, encharcada, liberou-se. Os alunos confirmam, e ninguém duvida: a professora de química ganhou a luz dos astros. O reconhecimento e a saudade combinaram confiança: seguiram o rastilho das estrelas. Juntos, elevaram o volume da música. Juntos,sustentaram as traves da tristeza que tais tempos abrigam. Em pé, os alunos disseram de si e da professora. Da escola e dos professores. Sem rachaduras na tela. Sem rachaduras na escola.
Todos viram o brilho que não morre: muda de lugar. A confiança nos movimentos da vida e da história cantou resistências. A química da educação não se faz em linha reta. Abraça curvas. Rima humanidades. Soma poesias. Faz-se coletividade.
À professora Cária… pelos laboratórios de vida e pelas composições de amizade: a matéria não morre, converte as suas propriedades.
Aos professores e às professoras que, nesses tempos sombrios, deixaram este mundo para desenhar outros, a nossa lembrança imorredoura.
Aos nossos alunos, sábios resistentes, que esbocem os traços de outras histórias, nas quais as narrativas sejam construídas pela consciência, pela justiça e pelo destemor.
Desenhos são projetos da criação: um impulso da vida pensada.
Imagem de destaque: Hannah Wei / Unsplash
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