Além dos nossos muros

Gustavo Neves

Em seu discurso de abertura da 75ª Assembleia Geral da ONU, o Presidente brasileiro Jair M. Bolsonaro, protagonizou um dos momentos mais simbólicos do nosso tempo. Notadamente, seu discurso esteve repleto de informações imprecisas ou inconsistentes. Sua provável intenção era muito mais confundir, do que efetivamente mostrar serviço ou se solidarizar com as dificuldades globais. Quando nos afastamos de toda a trama política, as palavras do presidente permanecem carregadas de uma textura polifônica e plurissignificante. Bolsonaro chegou a se referir ao que chamou de “Cristofobia”. Pois bem, será mesmo que podemos falar em Cristofobia no Brasil?

Antes de mais nada, é importante salientar que se a perseguição religiosa fosse realmente um assunto caro ao mandatário brasileiro, o mesmo poderia ter se manifestado publicamente a respeito (ainda em outubro do ano passado) em sua visita oficial à Arábia Saudita (país que não respeita a diversidade religiosa e promove frequente perseguição aos opositores do regime islâmico), contudo naquela ocasião, Bolsonaro nada falou.

Apesar de todas as incoerências que possam habitar as palavras presidenciais, é fato que estamos nos tornando uma sociedade cada vez mais egoísta e intolerante. Esta constatação não é recente. O filósofo alemão, Arthur Schopenhauer (1788 – 1860), chegou a comparar o ser humano ao porco espinho. Isto porque, temos a necessidade do outro, mas não podemos nos aproximar em demasia, já que nossos próprios espinhos (dores, traumas e dificuldades) podem ferir gravemente nossos pares.

Outro filósofo, o francês Jean-Paul Sartre (1905 – 1980) pai da icônica frase “O inferno são os outros”. Se referia a dificuldade de vivenciar o mundo, a partir dos olhares e experiências que não os nossos próprios, é tão abstrato quanto improvável. As pessoas pensam diferente. E a despeito do processo de globalização (que pretende homogeneizar o ser humano), somos mesmo, universos singulares. O historiador brasileiro Leandro Karnal, faz uma profunda reflexão a respeito deste cenário, em sua obra “O Dilema do Porco Espinho” e ainda produz uma segunda reflexão em parceria com a Monja Coen (liderança do Budismo Zazen no Brasil), denominada “O Inferno Somos Nós”. Nestas duas obras, o comportamento agressivo, superficial e pouco empático de nossa sociedade contemporânea protagoniza o ambiente de discussão.

Mas, e a Cristofobia? Essa expressão faz referência a uma possível perseguição sofrida por movimentos evangélicos. Recentemente, o termo ganhou visibilidade. Embora não tenha efetivo lastro (não no Brasil). Segundo a sua própria Constituição (1988), este é um Estado laico. Por vezes, a laicidade é confundida com a ausência de credos, quando na realidade, está ligada à liberdade religiosa. Somos o maior país católico do mundo e, portanto, de maioria cristã, o que eliminaria a sombra da perseguição. Aliás, os símbolos religiosos estão tão arraigados em nosso cotidiano, que por vezes, nem nos damos conta. Não é raro e nem é difícil observar crucifixos, imagens religiosas ou mesmo Bíblias, dentro de repartições públicas. Estes objetos estão expostos em escolas, prefeituras, bibliotecas, no judiciário, e até em plenários do poder legislativo. Ora, o símbolo da cidade referência do Brasil é o próprio Cristo Redentor, “de braços abertos sob a Guanabara”… já dizia Tom Jobim. Não é que seja um problema. De fato, não é proibido. Porém, qual então a justificativa para se falar em Cristofobia?

Fosse uma preocupação legítima, o Estado teria agido com urgência para garantir a segurança de outros grupos religiosos, em especial, os de matriz africana. Estes sim, profundamente vulneráveis e expostos à intolerância e ao preconceito. Isso vale também aos povos indígenas, frequentemente assediados por igrejas em busca de “salvá-los”, (aparentemente, da riqueza que repousa em seus territórios).

E a guerra em nome de Deus parece legítima, por mais contraditório que isso possa parecer! O líder máximo da Igreja Católica, Papa Francisco, teve sua obra publicada e traduzida para diversas línguas. No Brasil, o livro ficou conhecido como “O Nome de Deus é Misericórdia”. Neste livro, as características do Papa (que tem origem jesuíta) ficam evidentes. Ele não fala em domínio, não aborda patrimônio e nem se apega a essa “teologia da prosperidade” que transforma Deus num mercador, sempre disposto a trocar “boas ações” por acréscimo de patrimônio. Num rompante de interesse pelas ideias do Bispo de Roma, outra leitura oportuna é a “Quem sou Eu para Julgar?”, uma coletânea de frases e pronunciamentos do Papa, (perfeitamente aplicáveis) aos desafios impostos pelas desigualdades e mazelas, frutos do nosso egoísmo.

A intolerância religiosa por si só, é vazia de argumentos, não tem razão de ser, não se justifica em seus atos e não encontra amparo legal. Mesmo assim, no Brasil, não há que se falar em Cristofobia. Por outro lado, seria uma conversa muito positiva, se discutíssemos com a devida seriedade, os frequentes casos de desvio de recursos e claro, do enriquecimento absurdo de algumas instituições religiosas que estão concentrando um verdadeiro império. Por vezes, mesmo alguém que seja leigo das práticas religiosas, verá sem qualquer dificuldade que muitas igrejas cristãs se encontram afastadas da mensagem de Cristo. Entre pessoas, religiões, Chefes de Estado e para qualquer situação de nossas vidas, o conhecimento será sempre um conselheiro mais agradável do que a ignorância. A tolerância só ocorre quando eliminamos os estigmas e os fantasmas daquilo que desconhecemos. Respeitar a religião do outro, não me faz melhor. Mas, me faz mais livre. Já é um desafio e tanto, tentar se encaixar no perfil esperado daqueles que terão a “salvação”. São muitos os dogmas e muitas regras para criarmos um ambiente de hostilidade, que definitivamente não nos cabe!

Referências:

FOLLI, Ana Maria. Quem sou eu para julgar? Tradução Clara A. Colotto. Rio de Janeiro: Editora Leya,2017.

TORNIELLI, A, Papa Francisco. O nome de Deus é misericórdia. Tradução Catarina Mourão. São Paulo: Editora Planeta, 2016.

KARNAL, Leandro. O dilema do porco-espinho – como encarar a solidão. São Paulo: Editora Planeta,2018.

KARNAL, L., Monja COEN. O inferno somos nós – do ódio à cultura da paz. Campinas: Editora 7 Mares, 2018.


Imagem de destaque: Trecho do discurso do Presidente Jair Bolsonaro na 75ª Assembleia Geral da ONU. Fonte: TV Brasil female wrestling

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