Camila Santos Pereira
Propor uma análise crítica de instituições tradicionais pode acarretar diversos desafios em si. Desde o questionamento da posição de quem critica até o enfrentamento da defesa estagnada de que os arranjos institucionais precisam se manter como sempre foram. Ao problematizar as estruturas do ensino superior brasileiro, as intersecções entre raça, gênero e classe tornam-se marcações necessárias, mas não as únicas, para analisar a manutenção das desigualdades no meio acadêmico. Assim sendo, proponho, neste texto, uma breve reflexão e compartilhamento de interrogações que surgiram durante a produção da dissertação “Vozes que importam: mulheres negras na docência universitária”.
Antes, porém, e junto a isso, é preciso dizer que em minha pesquisa assumimos (meu orientador e eu) como parte da proposta científica evidenciar que se tratava de um estudo que dizia (muitas vezes dolorosamente) respeito a quem escreve – como alguém que se vê diante de uma luta (movida por muitas pessoas) para tornar-se docente do ensino superior. Escrevi sobre o racismo, em primeira pessoa, apontando minha trajetória acadêmica, como mulher negra, até o ingresso na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, como mestranda do programa de Pós-Graduação em Educação, onde me encontro com importantes aliadas/os/es. A partir disso, busquei evidenciar, proteger e exigir melhorias das políticas de permanência nas universidades, como elementos representativos da minha trajetória pessoal e acadêmica. Na dissertação, encontrei dilemas que já me acompanhavam desde a graduação e que foram aprofundados.
Mesmo depois da implementação das políticas federais das ações afirmativas, por meio da Lei de Cotas (2012), o quadro docente, dominado por pessoas brancas, não se diversificou expressivamente. Portanto, qual é o papel do racismo institucional nesse contexto? Como as universidades (re)conhecem esse cenário e quais ações são tomadas para transformar a predominante disparidade racial entre docentes das universidades? Esses são alguns dos questionamentos que me acompanham ao pensar a universidade, de dentro.
Como pesquisadora, dialogando com determinados departamentos das universidades públicas do estado do Rio de Janeiro e, também, com docentes e discentes de outras partes do país, me deparei com a falta de conhecimento das próprias instituições quanto à autodeclaração racial. Se as universidades desconhecem a raça de milhares de pessoas que atuam nelas, é porque “não enxergarem raça”? Isso não seria um retrato do racismo institucional em nosso país?
Observa-se, com esse silenciamento, como as pessoas brancas perpetuam sua dominação, por meio de estratégias para monopolizar as posições de tomada de decisão e de prestígio social, como a docência universitária. Ora, existe espaço para problematizar: como a discriminação racial impera nos concursos públicos para os cargos? Importante compreender como o racismo institucional atua, como descreve Silvio Almeida no livro Racismo Estrutural (2020, p.40), “impondo a toda sociedade regras, padrões de condutas e modos de racionalidade que tornem ‘normal’ e ‘natural’ o seu domínio”. Nessa perspectiva, algumas delimitações dos editais também podem ilustrar a manutenção das iniquidades.
Os editais dos níveis estaduais e federal precisam cumprir um número mínimo de vagas para que as ações afirmativas raciais sejam implementadas. Por exemplo, a Lei nº 12.990, de 09 de junho de 2014, promulga que, para a aplicação destas em concursos federais, a oferta precisa ser igual ou superior a três vagas. Constatamos, entretanto, que mesmo com uma proposta promissora, dificilmente as vagas para a docência universitária, por área, chegam a três, o que leva ao não cumprimento das reservas de vagas para pessoas negras.
Nas instâncias estaduais ocorrem outras estipulações, elevando o mínimo de vagas, algumas vezes, a cinco; consequentemente, aumentando as barreiras para a instauração das cotas. Não nos esqueçamos das provas de aula eliminatórias, em que a subjetividade, por mais que se possa dizer o contrário, entra em cena. Como foi descrito anteriormente, tal conjuntura elucida como o racismo institucional ainda opera nas “entrelinhas” dos editais, mesmo com as vitórias e avanços do movimento negro nessa seara. O que não representa um fracasso, mas uma nova configuração que necessita ser problematizada e aprimorada.
Para a transformação das estruturas que permanecem excludentes, qual o papel de pessoas brancas aliadas às práticas antirracistas? Ao perguntar para uma das responsáveis pelo quadro de profissionais, uma mulher branca, de uma das universidades que investiguei, por que as informações de autodeclaração racial e de pessoas com deficiência não eram apresentadas como dados organizados, a representante comentou que ninguém ainda havia questionado isso. Então, esperar de uma pessoa negra e/ou com deficiência, implicada na discussão crítica, o poder de alterar essas práticas, isenta a responsabilização das pessoas brancas em desmantelar as ações institucionais racistas.
Por meio de pesquisas e outras iniciativas das universidades, quem sabe possamos vislumbrar propostas fundamentadas para propormos mudanças nas leis vigentes? Pontuamos, contudo, que esse é um dos aspectos, não exclusivo, em que a discriminação racial é sentida nos campos universitários. E continuo a questionar: como uma instituição de ensino irá mudar suas práticas discriminatórias se nem ao menos se conhece (e não nos reconhece)?
Sobre a autora
Professora voluntária de Sociologia do TransENEM/POA e professora de inglês do Ifé English Course. Mestra em Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (ProPEd/UERJ). Integrante do geni – estudos de gênero e sexualidade e do GEETRANS – Grupo de Estudos em Educação e Transgressão.
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