A vida de Anyky e a Pedra de Exu: Por que contamos nossas histórias de opressão?

João Victor da Fonseca Oliveira

A morte tem sido  a nossa companheira. Não que não fosse, mas, sem intervalos, ela não dá o espaço necessário de que tanto precisamos para ajeitar a casa. Como aquela visita indesejável que não sabe a hora de se despedir. Por esse excesso de morte, penso com frequência nas histórias de vida, nas narrativas que produzimos acerca de nossa experiência sobre o mundo, mas também nas histórias de opressão e por que as contamos? 

Quem sabe? 

Biografia é um gênero bastante procurado nas livrarias. O interesse pela vida do outro não é mero sintoma da nossa época. Por outro lado, em torno de algumas vidas e trajetórias parece haver uma suspeita constante. Como se a história contada dependesse de quem a conta, e da legitimidade que algumas vozes têm sobre outras.

Seja a dificuldade que as pessoas têm em acreditar na história contada pelos outros sobre si mesmos(as), ou, no peso excessivo da verdade ou “versão irrefutável” que alguns testemunhos carregam, estamos diante daquele mesmo gesto de contar, como quem tenta não sucumbir ao tempo que arrasta o passado, assegurando seus traços. 

Fascínio ou suspeição, ambos não deixam de funcionar como enquadramentos para a experiência. Revelam algo a mais: as narrativas e as histórias que contamos sobre nós nos educam e, porque também educam aos outros, se tornam alvos do controle obsessivo daqueles que não suportam as vozes e as lições que elas sustentam. 

Narrativas também pintam imagens. São fotografias em uma paisagem em constante movimento e valem pela memória que guardam do vivido. Diante de uma tela, nenhuma sensação é absoluta e é inundada de experiências educativas. Isso porque toda imagem  tem uma história para contar. Por outro lado, elas também podem recriar os sentidos de seus(suas) autores(as), na interpretação dos(as) leitores(as). 

O “sentido das coisas” é sempre um acordo provisório.  

Anyky Lima, ativista e defensora das pessoas trans, é dessas vozes que sabiam contar.  Sua vida pintou muitas dessas telas provisórias que nos educam. Em entrevista concedida em 2013, ela disse:  

“(…) pela humilhação que nós passamos, eu percebi que alguém tinha que fazer alguma coisa, que nós somos humanos (…) que a gente vive uma vida normal como outra pessoa qualquer (…) que a gente precisava mostrar para a sociedade que a gente não era bicho (…) inclusive que as pessoas tinham que reconhecer o que era a travesti e uma transexual. Assim que eu comecei a minha luta”.

A luta pelo reconhecimento, travada por Anyky, coloca em questão não só a precariedade aumentada a que muitas vidas são submetidas, em função dos preconceitos socialmente difundidos, mas a ação educativa que sua narrativa empenha, ao contar sua história. Uma história de fissuras, opressões, celebrações e coragem. 

Como ela mesma disse: “Só quem passa por isso, é que sabe o que é”. 

Diante de uma experiência narrada, o poder de uma opressão regulatória se manifesta no mesmo momento em que percebemos que cada um(a) de nós “tem uma história para contar” sobre alguma violência. Ou, pior, sobre uma violência em comum.

Apesar das imensas diferenças entre nossas vidas e a de Anyky, é essa violência em comum que, de alguma forma, nos une. E nos reúne no famoso: “Quem nunca?”. Uma mistura de dor e alívio. 

Quando somos capazes de contar alguma história sobre nós mesmos(as), o poder também perde sua força. Como se parte da submissão que as opressões provocam fosse dissipada mediante a recusa da nossa convivência, pela palavra anunciada.

Contar as nossas histórias de opressão não é só uma forma de ressignificar para nós o vivido, mas de tornar intolerável sua repetição, de explicitar sua ocorrência e de libertar do silenciamento toda violência sem nome.

Esse é o pavor da onda reacionária que luta, obstinadamente, contra o ato de nomear, não suporta reconhecer que a linguagem já estabeleceu seus privilégios.

Quando Anyky ergue sua voz, ou cada um(a) de nós, colocamos no palco, à luz da cena, aquilo que deveria circular apenas nas coxias mal iluminadas e nos camarins da intimidade. Omissões bem intencionadas que seduzem toda vítima.

Contar algo de si também tem algo de destrutivo. Uma espécie de aposta sem cartas na mesa. Um jogo solitário que tenta encontrar algum eco do outro lado.

A suspeição do testemunho ou o peso das “versões irrefutáveis” talvez se encontrem na fratura que eles provocam: a exigência de dizer algo de si, sem conforto.

Narrar nossa experiência é uma busca imediata pelo nome próprio, diante de uma vida entregue aos outros – não sem violências. Ao mesmo tempo, é o seu fracasso. Tão frágil quanto inevitável. 

Contar nossa história é escrever à mão um enredo que já foi interditado. Esperando, nessa aposta, que outras cenas curem o que não foi possível dizer. Essa é a grande fissura no passado que o presente ainda pode executar: “Exu matou um pássaro ontem, com uma pedra que só jogou hoje”.

Como o AmarElo de Emicida,

Como o cabelo de João, 

Como o corpo de Dandara, 

Como a voz de Matheusa, 

Como aquele jeito de Arthur,

Como os sonhos de Ana, 

Como as profecias de André, 

Como a sutileza de Cris, 

Como a pertinência de Helena,

Como a beleza de Murilo, 

Como a indecência de Marcella, 

Como a irreverência de Sara, 

Como as histórias de Anyky, 

e a coragem de todes nós. 

Ainda temos muito o que contar!

Mesmo que a palavra cobre pelo o que nos empresta.

 

Em memória de Anyky Lima, referência na luta pelas pessoas trans e travestis, incansável na busca em acolher a novidade do mundo, e em torná-lo um lugar muito melhor do que ele foi para ela mesma. Uma mulher que sabia ensinar ao contar suas histórias. Foi tanto uma sobrevivente quanto alguém que sabia viver. Por ela, “limpem tudo aí, vai chegar a rainha que precisa dormir”. 


Imagem de destaque: “Roda de Conversa: População LGBT e Envelhecimento!” Acervo do CRP-MG. 

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