A uma, bala; a outra, flores!

A busca pelo espaço feminino na cena pública e os modos de ser e estar nos jogos de poder que configuram a sociedade brasileira

 

Evelyn de Almeida Orlando

 

Nas últimas semanas, o assassinato de Marielle Franco foi largamente noticiado e mobilizou fortemente uma pauta feminista e étnico-racial, que nos provocou reflexões sobre o longo e multifacetado processo de emancipação feminina na sociedade brasileira e a atuação das mulheres de diferentes segmentos sociais na vida pública. Também nos levou a pensar nos muitos modos que temos, como mulheres, de encampar nossas lutas, empunhar nossas bandeiras e nos afirmarmos em um mundo pensado por e para o controle e triunfo de homens, brancos, cristãos, representantes de uma elite político-econômica, de maneira privilegiada. As mulheres não são iguais, seus modos de praticar a política e a vida pública não se constroem da mesma maneira, seus objetivos, muitas vezes ligados a diversos interesses e diferentes lugares sociais, em larga medida, tornam suas pautas muito distantes, complexificando os limites do que poderia ser uma luta comum. Nesse quadro, suas condições objetivas para o exercício do direito de fala e de ação também são singulares, assim como as negociações que fazem para conquistar esse direito.

A investigação que venho desenvolvendo em âmbito acadêmico sobre mulheres intelectuais, especialmente mulheres católicas, ganhou relevo diferenciado neste momento, por realçar nesse quadro mais ampliado de afirmação feminina na vida pública os modos pelos quais tais mulheres venceram e se projetaram socialmente, através da propagação de valores morais e religiosos, desenvolvendo táticas para se inserir e circular na vida pública, assumindo o lugar de produtoras e mediadoras de uma cultura com a qual rompiam em silêncio para si mesmas, mas reforçavam para outras mulheres, ao defender a prescrição de papeis sociais pautados em sólidas bases conservadoras.

A luta que uniu mulheres em defesa de maior emancipação feminina e direito ao voto ao longo do século XX não se caracterizava como um projeto ou um movimento monolítico, apesar de algumas pautas em comum. Muitas mulheres brasileiras, representantes de diferentes segmentos sociais, reivindicaram seu lugar na sociedade e se mobilizaram mais ou menos enfaticamente em torno dessa pauta. Em larga medida, dois grandes projetos se configuraram. Um baseado no enfrentamento do lugar de consenso sobre o lugar social da mulher, contribuindo para a compreensão de que esses lugares são produzidos e construídos social e culturalmente, podendo, portanto, serem desconstruídos e reinventados em novas bases. O outro projeto também enfrentou essa representação cristalizada e, de um modo muito particular, rompeu com ela. Assumindo uma base conservadora, especialmente em relação a questões ligadas à ordem social, apoiadas na moral, nos bons costumes, na construção de uma civilização cristã e na família (uma das bases dessa civilização), ganharam legitimidade para falar em público, em nome da fé e da Pátria. Mas o discurso veiculado por esse grupo muitas vezes não era condizente com sua prática. Seus modos de ser e estar no mundo romperam com um lugar prescrito de interdição, de silêncio, de anonimato. Mas a que preço? Sua conquista social não conferiu a outras mulheres o mesmo direito alcançado, não se configurou como uma vitória coletiva, mas um conjunto de conquistas pessoais que, no apagar das luzes do dia, fez brilhar apenas suas representantes.

A estratégia de afirmação e legitimação desse último grupo, no entanto, não nos é estranha. É herdeira de uma prática do mundo dos homens, com fortes traços de individualismo, competitividade e alianças em torno de uma rede segura e estabelecida em torno do poder, que possui perfeita clareza sobre suas associações e possíveis consequências de seus atos, preferindo ocupar lugares de poder para fazer valer uma política de conservação, apesar da contradição de suas ações.

Duas mulheres, de épocas distintas, vêm à mente a título de comparação entre representantes desses dois grupos. Ambas lutaram por reconhecimento, legitimidade e seu lugar – como mulheres – no mundo. Ambas fugiram das estatísticas e desconstruíram o papel que a sociedade lhes reservou às margens do poder. Ambas se fizeram presentes na sociedade e na vida política e cultural da sociedade brasileira.

Maria Junqueira Schmidt, filha de uma família da elite carioca, branca, de origem europeia, conservadora, viveu entre os anos de 1901 e 1980, formou-se educadora  na Europa, retornou ao Brasil e se consagrou como intelectual, dominando os saberes especializados produzidos “lá fora”, aqueles que o mundo considerado civilizado tinha para nos ensinar. Maria Junqueira teve acesso e utilizou diferentes mídias para difundir esses saberes e ocupou de diversos modos a cena pública, publicou um extenso conjunto de livros, apresentou programas de rádio e TV, ministrou cursos e conferências em todo o país, tornou-se referência em temas como a educação da família, por exemplo, mesmo nunca tendo se casado, jamais enfrentou a estrutura social estabelecida, mesmo quando suas ações eram visivelmente uma tática de resistência ao lugar secundário que a sociedade lhe reservou como mulher; ao contrário, valeu-se disso para manter outras nesse mesmo lugar e assim se projetou, conquistou seu reconhecimento, lutou uma luta pessoal e se manteve na vida pública.

Marielle Franco viveu entre os anos de 1979 e 2018. Pobre, negra, bissexual, feminista, mãe solteira, nascida e criada na favela carioca, foi militante de um projeto de esquerda em tempos de recrudescimento político e de desmonte de toda agenda social brasileira, formou-se no próprio país e debruçou-se em pesquisas relacionadas à realidade social que vivenciava na cidade e na comunidade. Sua expertise estava calcada nos problemas experimentados ou presenciados cotidianamente. Foi eleita representante do povo, como vereadora, com 46 mil votos na cidade do Rio de Janeiro, a 5ª mais votada nas eleições de 2016, e assumiu como seus os problemas de outras mulheres em condição de vulnerabilidade social –pobres, negras, com pouca ou nenhuma instrução, moradoras da favela, vítimas de violências das mais variadas–; encampou uma luta coletiva, e desse modo ocupou o poder, a cena pública, enfrentou o sistema em suas negligências e abusos, e foi executada por isso.

Duas mulheres, duas lutas femininas por um lugar de fala e de ação no espaço público, dois mundos retratados, duas posturas políticas, ambas representativas de diferentes projetos de sociedade. Mas apenas uma delas vence; sua morte natural, por idade, tranquila, foi anunciada nos jornais com pesar, como uma grande perda; a outra, friamente executada ainda jovem, no momento mais importante do seu trabalho, silenciada e retirada de cena. Sua morte, também noticiada nos jornais, se por um lado trouxe indignação e revolta de muitos, por outro provocou comentários dos mais vis em relação à sua reputação e dignidade. Poderíamos nos perguntar: por que a uma são dadas flores e à outra balas?

Se crime e castigo andam lado a lado, que crime cometeu Marielle Franco para receber tal castigo? Qual o “sentido pedagógico” de seu castigo/assassinato? Que exemplo quiseram nos dar? Olhando as duas mulheres aqui representadas e seus respectivos projetos, é fácil perceber a quem é dado o direito de fala e a quem não é; é fácil perceber o endosso que determinados projetos recebem e o silenciamento reservado a outros; é mais fácil ainda perceber o quanto a mudança da tão sonhada “ordem social” é vista como ameaça à “boa sociedade”; mas é, sobretudo, evidente a crueldade reservada àqueles que enfrentam essa “boa ordem”, que ousam pensar além do que lhes foi permitido, que ousam contestar, resistir, mudar e ocupar outro lugar para além daquele projetado na hierarquia social.

Sim, a mensagem deixada nos diz claramente que, de fato, temos uma luta política travada nas trincheiras do poder. Um poder que não reconhece a legitimidade de outro, que de tantos modos foge da norma e dos padrões estabelecidos, sendo por esse crime interditado à bala. É preciso responder intensificando a luta, e mudar esse jogo político reacionário que invisibiliza os sujeitos, suas histórias, suas lutas, seus pleitos, negando-lhes o direito de jogar, de viver e de existir.


Imagem de destaque: Gibran Mendes

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