Leandro Lente de Andrade
Os recentes eventos ocorridos na cidade de Charlottesville, VA, nos Estados Unidos faz-nos refletir acerca da liberdade de expressão, da manifestação legítima de ideias, da tolerância, do que é intolerável e a dimensão da educação sobre os respectivos temas. Tal reflexão remonta questões de natureza filosófica sobre o princípio da tolerância, mas também nos remete ao passado, não tão distante, no qual a tolerância sem qualquer espécie de limite e o investimento numa educação perversa proporcionou toda sorte de atrocidades.
A segunda semana de agosto foi marcada por uma rememoração do pior que os séculos XIX e XX puderam produzir – Ku Klux Klan, nazi-fascismo e apartheid. As cenas de indivíduos marchando pelas ruas, portando suas tochas, ao coro de frases racistas, gestos nazistas e bandeiras separatistas inundaram os meios de comunicação. Fez saltar os olhos do mundo ao que, aparentemente, teria sido superado pela sociedade ocidental. Contudo, mostra-se vivo e, portanto, motivo alarmante para todo cidadão que preza pela igualdade, justiça e democracia. Em resposta aos supremacistas brancos, grupos antirracistas também foram as ruas. O conflito foi inevitável. O resultado: três mortos, dezenas de feridos e uma indignação de proporções globais. Houve quem criticasse a atitude dos grupos de resistência antirracistas. Afinal, uma sociedade tolerante deve admitir toda e qualquer liberdade de expressão e manifestação. Será mesmo?
“Posso não concordar com uma só de suas palavras, mas defenderei até a morte o seu direito de dizê-las”, frase comumente atribuía ao iluminista Voltaire por sintetizar a seu combate as imposições autoritárias de um governo absolutista e dos debates civis e religiosos. Fazer uma crítica à compreensão de tolerância do filósofo, desconsiderando seu locus histórico é estar fadado ao anacronismo. Todavia, retirar sua fundamentação de tolerância, próprias do contexto europeu, sobretudo da França, do século XVIII e aplicá-los em nossos dias, também seria um equívoco. Stuart Mill, filósofo e economista do século XIX, e John Rawls, na filosofia política do século XX, (ambos liberais) também defenderiam o direito à liberdade de expressão em toda e qualquer circunstância. Embora a questão filosófica permaneça sobre um mesmo tema, os processos históricos alteram nossa compreensão das proporções e resultados que uma determinada postura, ou “paradigma”, ante a tolerância passam a exercer.
A consciência das injustiças raciais ao longo da história e a barbárie causada pela ideologia nazista na Segunda Guerra Mundial dão uma nova configuração para o pensamento sobre tolerância. Nesse sentido, a Escola de Frankfurt traz importantes contribuições para pensar a tolerância, agora como um ideal humanitário. Marcuse afirma que a perspectiva de tolerância seria encarada como um fim em si mesmo; no qual, em última instância, seu objetivo seja a manutenção da liberdade, mas tendo em vista a preservação do indivíduo de qualquer espécie de crueldade. E é nesse sentido que fará uma crítica ao que ele denomina de “tolerância repressiva”, contra qualquer tipo de personalidade autoritária que se apropria do discurso de tolerância para imprimir sobre o outro as marcas de sua intolerância. Nesse sentido, para o pensamento do frankfurtiano, “certas coisas não podem ser ditas, certas ideias não podem ser expressadas, certas políticas não podem ser propostas, certa conduta não pode ser permitida sem transformar a tolerância num instrumento de continuação da servidão”; defendendo, polemicamente, a intolerância à “tolerância”. Uma posição paradoxal também é levantada por Karl Popper, inferindo sobre a necessidade de, em determinados casos, uma sociedade tolerante seja, paradoxalmente, intolerante ao intolerante; pois a intolerância, em última instância, seria uma ameaça à preservação da sociedade tolerante.
Diante da fundamental participação da educação no processo de formação dos sujeitos, a questão da tolerância apresenta-se como um caminho espinhoso a ser refletido, discutido e trabalhado por aqueles que se preocupam com a condição atual da escrita de nossa história, com a formação de cidadãos críticos, com o futuro da democracia e, sobretudo, com o famoso aforisma de Adorno: “a exigência que Auschwitz não se repita é a primeira de todas para a educação”.
No Brasil, a crescente dificuldade no diálogo entre setores extremistas da política nacional; as pautas acerca do currículo escolar, na defesa por uma educação crítica; as preocupantes reformas no ensino; e uma crescente ideologia nacionalista que privilegia uma elite e não tem proposições para os problemas sociais do país; nos leva a crer que Charlottesville está mais próximo do Brasil do que sua disposição geográfica.